Conselheira da ONU para África diz que ano foi de desafios e oportunidades
Leia a íntegra da segunda parte da entrevista concedida a Eleutério Guevane.
ONU News (ON): Nesta recuperação com que esperança é que o continente deve ultrapassar esta fase? Existe a nova vacina que já é distribuída em alguns países. Mas nessas grandes economias, as primeiras com a vacina, os números têm subido. Na generalidade, em África esse não é o caso. Com que atitude os africanos devem enfrentar os próximos meses?
Cristina Duarte (CD): A questão das vacinas é delicada. É uma uma questão que não se compadece com soluções nacionalistas e individuais porque o Covid-19 é um problema global. Não vai adiantar nada que um país, não vou aqui dizer nomes, açambarcar as vacinas e vacinar toda a sua população. A não ser que esse país se feche para os próximos 10 anos.
Na questão da vacinas é preciso ver que este vírus não conhece nem reconhece fronteiras, nem raças: é um vírus global. Portanto, a questão das vacinas tem que ser nessa perspetiva. Mas analisar África na questão das vacinas, eu penso que é uma atitude medíocre. Eu acredito que as Nações Unidas já estão a liderar o movimento para garantir a inclusão de África em termos de acesso às vacinas. Aqui põem-se duas questões: de ter dinheiro para as comprar, mas põe-se a questão da capacidade suficiente para as produzir.
Vamos supor que a partir de agora não há mais nenhum dólar que saia do continente em termos de fluxos ilícitos. Nos próximos três meses, como não há fluxos ilícitos a partir da África, África consegue poupar e consegue arrecadar recursos, por exemplo. Aí teríamos dinheiro para comprar, eventualmente. Em números muitos simples teríamos, eventualmente, dinheiro para comprar. E será que teríamos vacinas?
Os números dos contagiados são de um nível comensurável nos países que conseguiram produzir a vacina. Há um problema de ter dinheiro para comprar e o problema da produção ser suficiente para chegar à África, porque a África não teve condições de produzir a sua própria vacina.
ON: Uma questão muito ligada à África é a da paz e segurança e a meta de fazer calar as armas. Recentemente, houve uma visita de uma delegação de alto nível da ONU. Vários funcionários tiveram contato com as populações. Como é que se pode aproveitar este momento para avançar e melhorar nesse aspeto?
Esta visita era quase como uma obrigação moral. Depois de 2020, com a Covid-19 e todos os problemas não só sociais, económicos e psicológicos, obrigou as famílias em curto espaço de tempo a adotar estratégias de adaptação e de ajustamento. Foi complicado.
Era difícil que um dos primeiros níveis de liderança do sistema das Nações Unidas não visitasse o terreno antes do fim de 2020. Do ponto de vista estratégico e do ponto de vista humanitário era difícil não o fazer.
Temos fracas instituições, mas para as fortalecer se precisa de milhões e bilhões e para consegui-los precisamos de instituições fortes. Isto poderá ser uma armadilha.
A missão da vice-secretária-geral foi extremamente oportuna. Ela basicamente levou três grandes pilares na bagagem: o primeiro prestar solidariedade aos países e equipes das Nações Unidas que estiveram no terreno corpo a corpo e dia a dia a tentar apoiar os governos nesta luta. Mas também ela levou na bagagem os ingredientes necessários para permitir iniciar mais depressa possível o pensar o futuro, em termos de recuperar, em termos do build back better.
Mas também ela levou em sua bagagem, como o terceiro pilar, que lições tiramos deste 2020? O que funcionou? O que temos de fazer melhor? Onde é que temos que melhorar em termos de sistema das Nações Unidas e das suas prestações África? Coerência. Coordenação. O trabalhar mais em equipa. Que lideranças? Que sistemas de seguimento e avaliação? Portanto foi uma viagem extremamente positiva e com um impacto enorme. É só ver ver as redes sociais.
ON: No ano em que o secretário-geral pediu um cessar-fogo para combater a pandemia surgiram novos conflitos a ensombrar esta aposta do continente de calar as armas. Que saída vê para a situação atual no continente, principalmente quando surgem novos pontos de fricção?
CD: Houve, de fato, um aumento de nível de conflitos em África. 2020 é o ano da União Africana em termos de silenciamento das armas. Houve uma cimeira extraordinária que adiou o decénio. Acrescentou mais 10 anos para se atingir o objetivo, porque penso que terão concluído que o objetivo não foi cumprido.
Eu penso que antes de iniciarmos a próxima década, no que diz respeito ao silenciamento de armas em África, impõe-se uma avaliação para se entender melhor as causas e as raízes do nível relativamente elevado de instabilidade em África, de uma maneira geral. Enquanto as causas do problema não forem incluídas na equação dificilmente iremos resolver este problema.
Daí a realização das duas mesas-redondas, pelo meu Escritório como conselheira do secretário-geral das Nações Unidas conjuntamente com a representação da União Africana em Nova Iorque e contamos com dois países africanos patrocinadores: a Nigéria que a nível da União Africana lidera o movimento contra a corrupção, e a África do Sul que a nível da União Africana lidera o movimento em matéria dos fluxos ilícitos.
A ideia é: com estas mesas redondas trazer uma perspetiva diferente. Eu falei dos US$ 89 bilhões. São fluxos que pura e simplesmente nos escampam. Saem de África sob as mais diversas formas: subfaturação, superfaturação comercial, evasão fiscal, corrupção, lavagem etc. Mas nós agora também temos que começar a dar alguma atenção aos fluxos ilícitos que entram e financiam atividades ilícitas, nomeadamente o terrorismo. Nalgumas zonas em África, não em todas, o aumento da instabilidade está ligado a este fato.
Eu volto novamente às instituições. Indica, primeiro, que eventualmente as instituições públicas, e não só, não detêm um controlo do território geográfico. E ao não deterem o controlo do território geográfico há estas invasões ou estas infiltrações, passe a expressão. A falta de controlo do território eventualmente esteja ligada novamente à fraqueza de instituições. A fraqueza de instituições, por outro lado, deve estar ligada a outras fraquezas, nomeadamente recursos para o reforço das instituições. A questão que se põe é: Onde começar?
Temos fracas instituições, mas para as fortalecer se precisa de milhões e bilhões e para consegui-los precisamos de instituições fortes. Isto poderá ser uma armadilha. E aqui coloca-se o problema das lideranças, no sentido de quebrar isto e dizer ‘não, vamos atuar desta forma e vamos ver se de fato com um plano de ação claro e permitir quebrar este ciclo”. Gostaria aqui de sublinhar o quão importante é o papel das lideranças no building back better em África. É determinante. É uma das chaves do problema. E está relacionado com a questão do controlo dos fluxos financeiros e económicos por parte das instituições africanas.
ON: Tem algo mais a deixar para terminar a conversa. 2020 é para alguns um ano a esquecer ...
CD: 2020 não é para esquecer. Não é para esquecer porque a Covid-19 trouxe desafios, trouxe problemas incomensuráveis para o continente, mas trouxe também na bagagem muitas oportunidades.
Está a permitir, por exemplo, alargar as redes de proteção social em África que era um do Objetivos de Desenvolvimento do Milénio. Está a provocar um aumento na adoção de soluções digitais para os problemas africanos a um ritmo nunca antes visto.
Está a dizer de, forma muito clara, que enquanto não colocarmos as pessoas, o capital humanos, no centro do policy making não vamos conseguir. E colocam-se questões profundas da educação, da saúde do acesso à informação, a plataformas digitais e consequentemente o acesso à informação, a acesso à energia que neste momento não pode ser visto como um problema a nível infraestrutural. Mas é uma variável determinante para se colocar o capital humano no centro das políticas públicas.
Power África: permitir que as populações tenham acesso à energia é dar-lhes um instrumento para gerarem rendimentos familiares e, por esforço próprio, subirem acima da linha da pobreza. Há um conjunto de questões que depois estão interligadas e que têm que ser devidamente equacionadas.