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Entrevista: “A agenda dos oceanos é parte da nossa história” diz nova embaixadora de Portugal na ONU

Entrevista: “A agenda dos oceanos é parte da nossa história” diz nova embaixadora de Portugal na ONU

Mulheres

Ana Paula Zacarias, representante de Portugal nas Nações Unidas, fala à ONU News sobre a expectativa para a 2ª Conferência dos Oceanos, marcada para 27 de junho, em Lisboa; segundo ela, o encontro deve produzir uma declaração final com maior compromisso e ações dos países para preservar os oceanos, proteger a biodiversidade e estimular a economia azul.

O Departamento de Assuntos Sociais e Econômicos da ONU, Desa, que organiza o evento copatrocinado por Portugal e Quênia, ressalta que os oceanos são a fonte de subsistência para 3 bilhões de pessoas, e que quase metade da pesca marinha global gera 57 milhões de empregos.

Poluição plástica

Um dos temas da conferência será o combate à poluição plástica. Anualmente, 11 milhões de toneladas de plástico são lançadas nos mares com um custo de US$ 13 bilhões em operações de limpeza e perdas financeiras.

A embaixadora de Portugal também destacou a importância da participação dos jovens na conferência em Portugal, e como as artes podem inspirar mudança.

Ela concluiu refletindo sobre o papel da língua portuguesa na diplomacia e “a forma de ver o mundo em português”, valorizando diversidade e multilateralismo.

Acompanhe a primeira parte da entrevista de Ana Paula Zacarias à Monica Villela Grayley, da ONU News.

Entrevista: Ana Paula Zacarias é a primeira mulher a chefiar a Missão de Portugal na ONU (1ª. parte)

 

ONU News: Começando pelas prioridades. Este mês já existe a Conferência dos Oceanos em Portugal. O país também já está na campanha para um assento rotativo no Conselho de Segurança para o biênio 2027-2028. E mais o que, embaixadora? Este ano, a agenda está cheia...

Ana Paula Zacarias: A agenda está muito cheia porque para nós, a agenda dos oceanos é fundamental. Sempre foi. Faz parte da nossa história, faz parte da nossa geografia, faz parte do nosso interesse. E então trabalhando a agenda dos oceanos, trabalhamos também a sua conexão com a agenda climática, que é fundamental, e também com a questão do desenvolvimento sustentável.

Não se pode falar de crise climática e falar de ação nas áreas dos oceanos sem envolver a questão do desenvolvimento sustentado. E, simultaneamente, trazemos também a questão da segurança. Porque vemos como as alterações climáticas, como uma eventual subida do nível das águas dos oceanos pode trazer situações muito graves, em termos das comunidades ribeirinhas e inclusive o potenciar de conflitos.

Portanto, esta conexão entre oceanos, clima, desenvolvimento e segurança é para nós fundamental.

Depois, temos também outros temas muitos tempos importantes como é o caso das migrações. Ligado com estes, de que falávamos. As migrações são um dossier importante para Portugal, que é uma país de migração, de emigração, de imigração.

Temos quase cerca de 5 milhões de portugueses espalhados pelo mundo. Sabemos bem o que significar emigrar, portanto, estamos disponíveis para aceitar em Portugal, muitos dos migrantes que desejam estabelecer-se também no nosso país. Somos um dos países campeões do Pacto das Migrações.

E finalmente outros temas relacionados com a paz e a segurança. Nós somos, neste momento, membros da Comissão para Construção da Paz.

Uma comissão muito importante que aconselha o Conselho de Segurança nas suas decisões. E, portanto, temos aqui também um momento para discutir de forma muito empenhada as questões de paz e segurança, nomeadamente, também mais uma vez, esta relação entre segurança e clima.

Portugal recebe Conferência dos Oceanos em junho de 2022
© Unesco/Pedro Menezes
Portugal recebe Conferência dos Oceanos em junho de 2022

ON: Esta conferência em Portugal, a gente poderia dizer, ela também é uma conferência da lusofonia. Do mundo todo, mas especialmente da lusofonia porque todos esses países de língua portuguesa têm saída para o mar.

APZ: Sem dúvida. A Conferência dos Oceanos traz-nos aqui alguns elementos de base muito importantes.

A ideia de termos dados científicos, que nos permitam olhar para a atual situação dos oceanos.

Em termos de acidificação, em termos de biodiversidade, em termos da sua conexão com o clima. Os oceanos têm um valor central em tudo que é a dimensão da vida no planeta Terra. Então é muito importante que tenhamos uma base científica de debate que nos permita fazer esta ligação entre os diferentes dossiês, e que ao mesmo tempo, faça aqui que nós esperamos que aconteça em Lisboa: dar uma voz ao poder local, trazer os autarcas, trazer presidentes de câmaras de vários locais pelo mundo inteiro para discutir a implicação a nível local, trazer jovens, que vêm do mundo inteiro também, para discutir a problemática dos oceanos.

E a possibilidade de desfrutamos os oceanos também como um elemento de desenvolvimento, do turismo sustentável, de novas atividades e outras que podem potenciar esse desfrutar da vida do mar, dos oceanos.

E finalmente, a parte econômica, que é extremamente importante com a economia azul e com aquilo que nós poderemos usar de forma sustentável os oceanos, quer como fornecedor de alimentos, quer como um centro importantíssimo para a nossa economia das pescas, do turismo sustentável, costeiro e outras indústrias que se apoiam muito no mar.

Expectativa da ONU é que economia dos oceanos cresça para o dobro até 2030
Pnud/Pierre Michel Jean
Expectativa da ONU é que economia dos oceanos cresça para o dobro até 2030

ON: E brevemente, deve sair uma declaração final desse encontro?

APZ: Sim. Esperamos que sim. Ela foi negociada pela Granada e pela Dinamarca. Estamos confiantes de que esta declaração vai ser aprovada, por unanimidade, no final da nossa conferência. Esperamos, neste momento, a presença de cerca de 15 chefes de Estado e de Governo. Cerca de 12 mil pessoas que estarão em Lisboa. Muitos especialistas também muitos representantes da sociedade civil, das organizações não-governamentais que defendem o clima, todo o trabalho em torno da sustentabilidade. Esperamos que muitos jovens possam estar conosco também.

Além de um trabalho artístico, interessante, que está conectado com esta conferência porque precisamos de trazer as artes também como um elemento de divulgação.

Representante de Portugal nas Nações Unidas apresenta as credenciais ao secretário-geral da ONU
ONU/Eskinder Debebe
Representante de Portugal nas Nações Unidas apresenta as credenciais ao secretário-geral da ONU

 

ON: (As artes) para inspirar, não é verdade? Embaixadora, a senhora chega aqui com uma grande bagagem profissional, eu queria mostrar o vídeo da senhora chegando à ONU e entregando suas credenciais ao secretário-geral.  E se falou em português nesse dia?

APZ: Falamos sim. É uma grande honra. Um enorme privilégio poder falar em português com o secretário-geral das Nações Unidas. E poder entregar-lhe as minhas cartas credenciais e ouvir do secretário-geral palavras como Portugal é um pilar muito importante do multilateralismo e as boas-vindas que me deu com uma confiança e com uma forma de estar que é muito do secretário-geral. Um homem extremamente afável e ao mesmo tempo de uma grande inteligência e com um enorme sentido de pragmatismo e simultaneamente de acreditar e de prudência na ação.

ON: E o primeiro secretário-geral da história de língua portuguesa. Como é que essa língua ajuda na diplomacia, embaixadora? Esse Weltgeist (forma de ver o mundo) da nossa lusofonia?

APZ: Eu acho que é fundamental, sabe? Porque por todos os lados, onde eu passei, seja na Unesco, seja no Instituto Camões, que dirigi também em Portugal, seja mesmo nas minhas passagens pelas questões europeias, o português sempre ajudou. Sempre ajudou porque permite-nos falar com os nossos parceiros da lusofonia, mas o português hoje é muito mais do que só os nossos parceiros. É uma língua que é estudada por milhões de estudantes em todo o mundo como língua internacional de comunicação. E isso dá-nos uma capacidade de ação, de chegar até outras pessoas, que eu acho absolutamente fundamental nesse momento. A nossa diversidade é um fator muito grande de união. Tem que ser. A diversidade tem que ser um fator de união. A diversidade tem que ser um fator positivo nas nossas vidas, e usar as diferentes línguas potencia essa diversidade, que nos dá maior capacidade de adaptação, maior  capacidade de interação, que nos dá capacidade de compreender e ouvir os outros. E tudo isto é fundamental ser queremos um multilateralismo eficaz.

Ana Paula Zacarias, representante de Portugal nas Nações Unidas
ONU News
Ana Paula Zacarias, representante de Portugal nas Nações Unidas

ON: E a gente falou no início da entrevista que a senhora faz história ao se tornar a primeira mulher (a chefiar a Missão de Portugal na ONU). Mas é a primeira mulher em 67 anos. Embaixadora, o que está acontecendo. Nós estamos no século 21. Por que que nós mulheres, ou as mulheres, não assumiram esse papel que lhes é devido na política, em cargos eletivos, na diplomacia internacional? O que é que falta?

APZ: Estamos a caminho. Estamos a fazer caminho. E o caminho faz-se ao caminhar. Eu acho que, neste momento, em Portugal, por exemplo, nós temos um governo paritário com o mesmo número de ministros e ministras. Temos também um número muito crescente de mulheres na diplomacia portuguesa, e em geral, na diplomacia mundial, eu diria. E quando hoje entramos aqui na sala da Assembleia Geral das Nações Unidas, vemos a sala, verdadeiramente, pontuada por mulheres. Não diria ainda em paridade, mas já com um grande número.

E precisamos, muitas vezes, de mais apoios. Precisamos de apoios sociais, precisamos que haja creches, que haja apoios para as famílias para que mais mulheres possam entrar no mercado de trabalho, e para que elas possam formar e possam ter um papel muito ativo na sociedade.

Isto é verdade em quase todos os países, mas há países que precisam de apoio ainda, precisam de todo o apoio que possa ser dado para que as mulheres possam ser ouvidas, para que as mulheres possam entrar nesse mainstream da construção porque elas são metade do mundo e precisamos que todas possam contribuir para a sua construção.

ON: E a sua história pessoal? Em 1983, quando a senhora começou, não havia mulheres como hoje...

APZ: Não. Havia muito poucas. Muito poucas mulheres. As mulheres em Portugal só puderam entrar na carreira diplomática a partir de 1974, quando foi da revolução democrática, só a partir desta altura é que as mulheres puderam entrar para a carreira diplomática. E depois, fizemos todo o percurso que é sempre um percurso longo para um diplomata de carreira. Começa sua carreira como secretário de Embaixada até chegar a conselheiro, ministro e depois embaixador.

Hoje, temos já um escol de mulheres portuguesas, embaixadoras. Neste momento, temos uma embaixadora num dos postos mais complexos e difíceis que é Moscovo, por exemplo. Temos outras embaixadoras em postos também complexos, um pouco por todo o mundo. E, pela primeira vez, estou aqui, nas Nações Unidas, o que é um grande privilégio, uma honra. E também ao mesmo tempo me dá um sentido de  missão de também aqui trabalhar por esta questão da paridade de gênero e trabalhar com os dossiês de empoderamento das mulheres.

Uma representante feminina eleita motiva outras mulheres a se posicionarem e expressarem suas opiniões em Rajasthan, Índia
ONU Mulheres/Ashutosh Negi
Uma representante feminina eleita motiva outras mulheres a se posicionarem e expressarem suas opiniões em Rajasthan, Índia

ON: E boa sorte para a senhora nessa missão. A senhora falou sobre Moscou e vamos agora falar da Ucrânia porque a senhora chega da União Europeia e nos traz esse insight europeu. O que está faltando, Embaixadora, para essa guerra acabar?

APZ: Esta é uma guerra injusta, uma guerra terrível, uma guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, que teve um impacto sobre os cidadãos ucranianos que a vivenciam todos os dias com mortos, violações, situações terríveis. E que também nos entram pela casa adentro através das notícias, através da comunicação social, e que despontaram em toda a Europa, eu diria em todo o mundo, um sentimento de apoio à Ucrânia e de apoio aos refugiados; são cerca de 6 milhões de pessoas que saíram da Ucrânia em busca, sobretudo mulheres e crianças, em busca de um refúgio. É certo que este não é o único conflito no mundo. Nós sabemos que há conflitos tão duros e tão difíceis quanto este, noutras geografias, noutras latitudes que também merecem e têm que ter a necessária atenção da parte da comunidade internacional.

Mas este é talvez o mais recente e talvez o que mais nos impacta e que foi visto pela Europa como basicamente um ataque àquilo que são os nossos valores fundamentais. Nós, na União Europeia, sempre nos vemos como um círculo de paz, e de construção de prosperidade. E, portanto, foi muito difícil encarar esta agressão.

Agora, eu acho que a comunidade internacional, nomeadamente o secretário-geral, está a fazer um papel central neste momento. De forma pragmática, como ele próprio referencia, primeiro fazendo esta viagem que fez à Turquia, a Moscovo, a Kiev, a Moldova.

Ao mesmo tempo, indo depois aos países africanos: ao Níger, ao Senegal, à Nigéria numa mensagem de que: ‘eu estou preocupado com a situação do mundo e com a segurança no mundo’, mas a ida do secretário-geral a Moscovo, a Kiev e também a Ancara, foi muito importante para conseguir avançar no dossiê da ajuda humanitária.

Criando um corredor humanitário que permitiu tirar centenas de pessoas que estavam presas na cidade de Mariupol. E por outro lado, responder a esta questão importantíssima da insegurança alimentar que se está a viver no mundo. A Ucrânia é um dos celeiros da humanidade. Há muitos barcos parados no porto, cheio de cereais, e que não podem sair.

Há toda uma produção cerealífera, que é fundamental, que seja distribuída e comercializada, e que não pode fazer, que não está a acontecer, e que o secretário-geral, e muito bem, está a tentar a desbloquear com a ajuda de outros países para assegurar, se possível, um corredor seguro para a saída desses bens alimentares.

Corre-se o risco de 1,7 mil milhão de pessoas ficarem em situação de pobreza, em situação de risco alimentar profundo. E, portanto, esta é uma das prioridades do secretário-geral neste momento, que todos nós apoiamos.

Segunda parte da entrevista da nova embaixadora de Portugal na ONU

ON: Embaixadora, muito obrigada pela entrevista. Uma alegria falar com a senhora. Tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de acrescentar a essa entrevista?

APZ: Não. Só agradecer, realmente, ao trabalho da ONU News em Português. O vosso trabalho é fundamental para a divulgação do multilateralismo, para a divulgação de tudo que se faz nesta casa das Nações Unidas. A grande casa comum da humanidade. E poder fazer a divulgação do que aqui se faz junto dos cidadãos, e fazê-lo em português, para que mais gente possa entender o que aqui se decide, entender o que aqui se diz é da maior relevância.

O vosso trabalho é fundamental para nós construirmos uma sociedade mais justa. Uma sociedade que consiga, efetivamente, levar para a frente os valores da paz, da segurança, da solidariedade internacional, os valores do desenvolvimento. E, portanto, os meus parabéns à Monica e a toda a sua equipa pelo trabalho que vêm realizando.

ON: Muito obrigada a senhora e boa sorte neste mandato.

APZ: Muito obrigada.