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Alpinista fala sobre sustentabilidade das montanhas BR

Niclevicz durante a escalada do K2, em 1998
Arquivo Pessoal/Waldemar Niclevicz
Niclevicz durante a escalada do K2, em 1998

Alpinista fala sobre sustentabilidade das montanhas

Clima e Meio Ambiente

Waldemar Niclevicz falou à ONU News, de Curitiba, sobre o efeito do aquecimento global nas montanhas, a importância do ecossistema e o efeito do aumento do fluxo de turistas em áreas protegidas. O alpinista também comentou sobre a decisão da Assembleia Geral da ONU em declarar 2022 como Ano Internacional do Desenvolvimento Sustentável da Montanha e avaliou o que poderia ser feito para preservar os destinos.

ON: 2022 será o Ano Internacional do Desenvolvimento Sustentável da Montanha. Com sua relação com a montanha, quais são os principais cuidados e temas que você gostaria de ver destacados neste ano?

WN: Não foi uma surpresa para mim a preocupação da ONU em decretar 2022 como Ano Internacional do Desenvolvimento Sustentável da Montanha. Para mim, foi uma surpresa em 2002! 

Eu achei incrível e uma forma de alertar a humanidade da importância das montanhas para todo o planeta, principalmente para o ser humano e para nossa sobrevivência. Devido, principalmente, o aspecto fundamental que é ser fonte de água. Não só para países onde tem glaciares no alto das montanhas, mas também para países tropicais como o nosso, onde temos florestas nas montanhas. 

Essa floresta representa também uma verdadeira caixa d’água porque ela retém a água da chuva, alimenta os lençóis freáticos e garante a sobrevivência de grandes cidades, principalmente no Brasil, que estão próximas a montanha. São Paulo depende da água da Serra do Mar, Rio de Janeiro, Curitiba – onde eu moro.

Acampamento no Salto Angel, a maior cachoeira do mundo, na Venezuela, em 2011.
Arquivo Pessoal/Waldemar Niclevicz
Acampamento no Salto Angel, a maior cachoeira do mundo, na Venezuela, em 2011.

Então é bem legal essa reedição do Ano Internacional das Montanhas com o foco em desenvolvimento sustentável, mostrando que precisa haver esse equilíbrio entre o homem e a natureza, especificamente a montanha, senão, não há nossa sobrevivência.

Em razão do aquecimento global, os glaciares estão derretendo. É mais fácil perceber isso em regiões onde existe neve e em razão do relevo houve acúmulo de neve e formação de glaciares. Muitos desses lugares, principalmente as regiões mais próximas do Ecuador, viram seus glaciares retrocederem de forma absurda nas últimas décadas. Tem vales nos Andes, no Himalaia... É mais crítica a situação próxima ao Ecuador, e tem regiões que já perderam seus glaciares, no Ecuador, na Colômbia. 

Eu conheço muito bem os Andes e onde o glaciar retrocedeu nos últimos 30 anos. Eu conheço os Andes há quase 40, fui a primeira vez aos 17 anos, em 1985 e visito todos os anos. E regiões na Bolívia, no Peru, no Ecuador, Colômbia, Venezuela, que eu conhecia antigamente, é assustador ver como os glaciares retrocederam. 

Para uma pessoa normal, esse retrocesso é praticamente imperceptível, mas para um alpinista e ainda mais para mim, que sou ambientalista e tenho uma visão mais cuidadosa com o meio ambiente percebe suas consequências. É horrível você ver um lugar onde tinha um belo glaciar e hoje ele deixa um amontoado de pedras, areia... Que praticamente assassina o glaciar e torna inviável a formação de um próximo glaciar, a não ser numa próxima era geológica, glaciar, que pode demorar 10 mil anos. Nós não estaremos aqui, então o homem tem que entender que as consequências desse aquecimento global e da perda desses mantos de neve, tidos como eternos, vai fazer com que a nossa eternidade seja abreviada também aqui na Terra.

Acho que a ONU tem que reforçar a ideia da importância desse ecossistema, que é extremamente frágil, para nós. O ser humano precisa entender que as montanhas não são assim tão invencíveis ou indestrutíveis como às vezes imaginamos. Algo extremamente sólido e eternos. Não é.

A partir do momento que o glaciar desaparece do topo de uma montanha ou perde esse apoio natural que ele tem na base da montanha – porque o glaciar é um plano inclinado, são toneladas de gelo, que tão ali desafiando a força da gravidade – geralmente ele tem uma base que sustenta esse plano. Como derrete primeiro essas partes mais baixas ele perde esse suporte e o que está lá em cima acaba escorregando. O gelo sob pressão tende a fundir então o contato de um glaciar grande com a montanha, com a rocha, na verdade é uma pasta que est á sendo derretida pela pressão e ajudando esse deslizamento. Se não tem um calço para conter isso, ele colapsa. Com o colapso a gente perde esse equilíbrio que havia antigamente e como as precipitações estão diminuindo... 

Glaciar é como um rio, quando chove, o rio aumenta seu volume. Quando neva no topo da montanha, o glaciar também aumenta. Só que os fluxos das nevadas estão sendo cada vez mais instáveis e não há o equilíbrio, está mais inconstante. O clima está mais instável e essa instabilidade não permite uma precipitação estável, que existia antigamente e alimentava os glaciares.

Os Andes estão batendo recordes e cada vez mais quentes e mesmo que haja precipitação, antes dessa neve evoluir e se transformar – importante entender que mais de 90% do volume do floco de neve é ar, então a partir do momento que o floco cai no chão ele começa a perder o ar e se compactar. Aquela neve fica dura e vira gelo, desde que tenha tempo para isso. Se vier um sol muito forte logo em seguida, essa neve derrete quase imediatamente, em questão de horas, e não chega a formar esse gelo fundamental para refazer o glaciar.

Vulcão Puntiagudo, na Patagonia Chilena
Arquivo/Waldemar Niclevicz
Vulcão Puntiagudo, na Patagonia Chilena

 

É preciso alertar a comunidade internacional da importância de tentar preservar. O glaciar em si, não tem muito o que fazer, porque o aquecimento global deixa seus efeitos. Poderíamos reduzir os gases de efeito estufa, para colaborar pelo controle maior do descontrole térmico do planeta para evitar o derretimento. A partir do momento que ele perde seu ponto de equilíbrio, ele caminha para sua autodestruição, não consegue se recompor.

Por outro lado, em regiões mais tropicais, como o Brasil, onde não há presença de neve, a importância absurda de preservar as florestas e as nascentes dos rios. Nas regiões montanhosas, pegando o Brasil como exemplo, as florestas estão nessas regiões montanhosas. Praticamente na serra do mar, onde o homem não invadiu por problemas de relevo porque se fosse plano, o homem teria invadido.

ON: Com a pandemia, os destinos de montanha, por seu isolamento, foram muito buscados. Embora possa ser importante para as comunidades desses locais, um dos principais pontos desse aumento no fluxo foi o lixo deixado para trás. Você tem observado, em suas expedições, esse aumento drástico de lixo? O que, além da conscientização, você sugere que pode ser feito para mitigar o problema?

WN: Nos últimos anos, na última década absolutamente com certeza, o homem começou a buscar mais a natureza. Já começou a buscar mais um contato com seu ambiente primitivo e com as montanhas. Porque, como eu já comentei, o que restou de natureza intocada e ainda primitiva está nas montanhas. O que estava fácil de acesso o homem destruiu, ocupou, construiu cidades, usou para a agricultura e continua usando. Aqueles espaços que não puderam ser ocupados viraram refúgios naturais. São as montanhas. 

Então, quando alguém sente vontade de caminhar numa floresta, essa floresta está hoje na montanha. Quando ele sente vontade de tomar um banho de cachoeira, essa cachoeira, ou esse rio limpo onde ainda se pode tomar um banho ou sua água, está na montanha. 

Da mesma forma, a fauna e o que resta ainda da fauna selvagem, está nas montanhas. O homem buscando esse reencontro com a natureza hoje é natural que ele procure as montanhas. O problema não é ele procurar as montanhas. O problema é que esse turista, o alpinista ou montanhista está preparado e ama a montanha. Ele está preparado. Ele ama montanha, regra geral. Existem exceções. Mas, no geral, estou alpinista, ele respeita a montanha ele tem uma troca muito grande. Há uma simbiose muito grande que ele tem com esse ambiente. Só que nós somos poucos alpinistas e montanhistas. 

Você não está num parque dentro de uma cidade, onde facilmente você consegue regular ou o número de visitantes ou os impactos que esse visitante causa num grama, num jardim. A partir do momento que acontece uma erosão numa trilha, muitas vezes, se você continuar a visitação e não tomar nenhuma medida de contenção dessa erosão, só tende a aumentar. E daí, com fluxo grande turistas ou um dia muito seco, acontece um incêndio. E essa vegetação que se perde, ou essa cobertura vegetal de um solo pedregoso, porque a montanha é uma rocha, ela tem uma superfície de terra, mas a superfície de terra ela pode ser de um metro, de 50 cm ou até menos. Se ela perde essa floresta ou essa vegetação que está segurando aquela terra ali, a rocha aflora. Volta a aparecer. E aí, recompor esse solo, para que haja novamente a recuperação desse manto vegetal, é muito difícil. Vai demorar décadas ou centenas de anos. Então, tem que ser uma visitação muito controlada. 

Muitos países não têm condições de fazer esse controle. A exemplo do nosso Brasil, os parques nacionais onde existem montanhas não existe uma gestão do poder público para minimizar esses impactos ou para criar medidas de contenção ou recuperação desses impactos. Quem faz isso são as associações e os clubes de montanhistas. São os ativistas ambientais e somos nós que amamos a montanha. Então tem que deixar muito claro: não é que com o número de visitantes o lixo vai aumentar. Com o número de turistas desavisados, aqueles que vão para montanha sem estarem preparados, aí sim o lixo vai aumentar. E não é só o lixo. Todos os impactos, porque o turista muitas vezes não é capacitado...

Alpinista brasileiro, Waldemar Niclevicz, nas Grandes Jorasses com o Mont Blanc ao fundo
Arquivo Pessoal/Waldemar Niclevicz
Alpinista brasileiro, Waldemar Niclevicz, nas Grandes Jorasses com o Mont Blanc ao fundo

 

Voltando à sua primeira pergunta sobre o que deveríamos fazer no Ano Internacional de Desenvolvimento Sustentável das Montanhas? Tentar capacitar o visitante para que ele realmente não leve para casa cristais, rochas e para que ele não tenha um comportamento agressivo na trilha. É muito pesado, as pessoas destroem as trilhas. Eu subo Marumbi toda a semana. Cada pedra deslocada eu percebo. Cada galho novo de uma árvore que é quebrado na trilha eu percebo. As pessoas não pegam com carinho na árvore, já que é cheio de vegetação o Marumbi. Elas pegam com força, elas se sustentam nela. E aquela árvore ali está fazendo um esforço imenso para conseguir se fixar naquele solo que é muito estreito, pequeno. E chega um momento que essa árvore é derrubada pelo visitante.

E começa naquele ponto uma erosão. E nossa comunidade, ali no Marumbi, vai lá e faz a contenção da erosão. A árvore está caindo e a gente amarra uma corda ou tenta fixar para que ela resista mais um pouco, mas é fatal. Pode passar um ano ou dois e aquela árvore que começou a se afrouxar já está condenada. Um dia, ela vai cair e vai secar. E quanto tempo vai demorar para nascer uma nova árvore naquele local se a visitação continuar ou se o fluxo de visitantes foi grande? é importante a gente destacar o comportamento do visitante que seja defensivo. Que ele pega com carinho nas pedras, nas rochas, nos galhos. E grupos pequenos: quando você tem um grupo de duas, três ou quatro pessoas o impacto é bem pequeno numa trilha. Quando passa o de 15 ou 20 pessoas, de amigos se divertindo, eles deixam rastro de destruição na trilha. Então, é importante fazer a visitação com grupos pequenos.

Isso é notável principalmente em áreas montanhosas tropicais. Se isso for nos Alpes, onde a região Alpina é praticamente pedregosa, o impacto é pequeno. Existe também na mesma proporção: maior para grupos grandes e em grupos menores o impacto menor. Mas sempre há um impacto. Agora, numa região onde há vegetação impacto é bem maior. E essa situação é e castigada. E aí quando a pôr fenômenos naturais às vezes, ou agora na pandemia que os parques foram fechados, é impressionante como a vegetação naturalmente se recompõe: Há uma recuperação daquela trilha naturalmente.

Mas, se os órgãos públicos e a comunidade intervirem: fazer barreiras de contenção da água, barreira de contenção com pedras para que que aquela água que vem na enxurrada não leve embora aquela pouca terra que resta, esses diques de contenção vão fazer ali pequenas barragens de terra, onde a vegetação vai voltar. E se a gente plantar também espécies nativas ali, essas espécies que são nativas daquele ambiente, também vão crescer mais rapidamente. E vão ajudar a recompor aquela trilha. São várias ações que a gente pode ter. 

Você olha hoje o que virou a caminhada, não só escalada do Everest onda de turistas todos os anos querem chegar lá no alto. Mas a simples caminhada até o acampamento base do Everest, são milhares de pessoas, em maio em outubro, que querem chegar no acampamento base do Everest. Se você não se levantar de madrugada, a partir das 9 horas da manhã, a trilha ou o acampamento base Everest é uma pessoa na frente da outra. São três a quatro mil pessoas em fila indiana, parece uma procissão. E você vê pessoas de bolsa tiracolo, o que não é ideal para usar numa montanha, mas uma mochila. Você vê pessoas de sandália, o que não é o ideal para caminhar na montanha, o ideal é uma bota confortável com solado aderente. 

E você vê aberrações. Você diz que essa pessoa não deveria estar aqui ou não está preparada para estar nesse ambiente. A consciência de a gente tentar passar o bom comportamento para as outras pessoas, eu acho que é uma iniciativa que todo mundo tem que fazer. A ONU, lógico, muito pode ajudar a gente. Porque nós fazemos o que podemos em nosso entorno. Deveríamos ser nós: a prefeitura, o Estado, o país e todo mundo fazendo a sua parte para defender as montanhas. 

Falando de lixo na montanha, uma coisa grave que acontece é não só do visitante. Qual é a ponte entre o turismo que leva até a montanha são as agências especializadas em turismo de aventura. A maioria é ética e tomam todos os cuidados. Mas há muitas agências que não fazem essa educação ambiental. Não fazem a condução correta do seu cliente até à montanha.

ON: Nos últimos anos, muita gente tentou subir o Everest e isso gerou um ‘engarrafamento’ próximo ao pico. A escalada é uma prática que exige muito preparo e cuidados. Como você vê esse aumento de pessoas buscando chegar no topo? Quais são os prós e contras de cada vez mais gente buscar esse e outros desafios?

Falando do aumento das expedições ao Everest, eu não acho isso errado, desde que seja feito da maneira certa. Ou seja, desde que os turistas sejam capacitados. Eu acho que todo mundo tem o direito de escalar o Everest. Eu acredito muito na democracia. Desde que o governo do Nepal e da China cobrem das agências uma correta gestão dessa expedição, e que tragam o seu lixo de volta, e que o governo também exija isso. É um desafio. E desde que cada um também tenha a consciência que o Everest não é para amadores, não é para turistas.

Se você quer escalar o Everest um dia o ideal é que você se transforme no alpinista, que procure experiência que você aprenda a respeitar a amar montanha. Aí sim, se você criar uma relação afetiva com a montanha e realmente esse for o seu desejo, aí sim se prepare e vá para o Everest.

Agora, simplesmente ir para o Everest simplesmente porque você quer chegar lá, sem não ter tido nenhuma outra experiência antes, não é uma coisa muito ética. Não é justa com a montanha. Porque depois vai acontecer o que a gente vê na mídia. E é uma visão deturpada do alpinismo. Isso não é alpinismo. Isso é turismo. 

E o Everest não é lugar para turismo. Tem um parque para turistas que é temático. O Everest é uma montanha que exige experiência, mas é um lugar muito perigoso. Muitas pessoas morreram. A maioria das pessoas que morrem são turistas despreparados que não deveriam estar lá.

ON: Sua mensagem final sobre a iniciativa de ter 2022 como um ano dedicado ao debater o desenvolvimento da montanha e seus comentários em geral sobre o que tem observado no passar da última década nesses destinos.

WN: A mensagem final:  é louvável. Fico muito feliz, como eu já disse, de termos um ano dedicado ao Desenvolvimento Sustentável das Montanhas. Que sirva de alerta para todos nós do quão delicado é esse ambiente da montanha.

Por um lado, o turismo vem sendo e sempre vai ser apontado como a principal solução para a sustentabilidade dos povos da montanha considerando o lado socioeconômico. Mas ser sempre a maior ameaça que as montanhas podem ter. Fazer com que essa relação a experiência seja bem concebida é o maior desafio. Isso cabe a todos nós.  A responsabilidade é de todos nós, os envolvidos nessa atividade. 

Tanto os guias, as agências, os governos, os parques onde estão inseridas essas montanhas, mas principalmente a consciência de cada cidadão e cada pessoa: que é um lugar muito especial, muito delicado e exige muitos cuidados. Exige todo o esforço para manter esse lugar e ambiente no seu estado mais natural possível, para que continue existindo para as futuras gerações.