Unctad alerta que sem mudanças urgentes, haverá recessão global
Relatório Comércio e Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, Unctad, cita choques de oferta, baixa no nível de confiança do consumidor e guerra na Ucrânia; chefe da agência, Rebeca Grynspan, pede vontade política.
O crescimento global cairá para 2,2% no próximo ano, a previsão é da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, Unctad*, que prevê para este ano, um aumento de 2,5% na economia.
Segundo a agência da ONU, se não houver mudanças urgentes em políticas, o mundo poderá viver uma recessão global para a qual já caminha.
Desaceleração global e pressões inflacionárias
Os dados são do Relatório Comércio e Desenvolvimento 2022, divulgado nesta segunda-feira, em Genebra, sede da Unctad.
Os movimentos da política monetária e fiscal nas economias avançadas podem causar não só uma recessão global, mas também estagnação prolongada levando a danos piores do que a crise financeira de 2008. Segundo o documento, choques de oferta, queda nos índices de confiança do consumidor e de investidores além da guerra na Ucrânia provocaram uma desaceleração global e desencadearam pressões inflacionárias.
Algumas medidas como o aumento da taxa de juros de bancos centrais pelo mundo devem levar a um corte ainda maior no crescimento.
O relatório da Unctad indica que todas as regiões do mundo estão sendo afetadas por esse quadro, mas os países em desenvolvimento são os mais vulneráveis.
Cerca de 60% das nações de baixa renda estão em situação de sobre endividamento ou quase chegando a esse quadro.
A agência da ONU afirma que as instituições financeiras internacionais precisam aumentar, urgentemente, a liquidez e estender a mais países o alívio da dívida real.
Já as economias avançadas devem limitar o aperto fiscal.
Queda de salários reais
A Unctad recomenda esforços globais que tentem reduzir o preço dos alimentos, energia e fertilizantes.
Em um momento de queda dos salários reais, aperto fiscal, turbulência financeira e apoio e coordenação multilaterais insuficientes, o aperto monetário excessivo pode inaugurar um período de estagnação e instabilidade econômica para muitos países em desenvolvimento e alguns desenvolvidos.
Os aumentos das taxas de juros deste ano nos Estados Unidos devem cortar cerca de US$ 360 bilhões de receita futura para os países em desenvolvimento (excluindo a China) e sinalizar ainda mais problemas à frente, alerta o relatório.
Questão de vontade política, diz Rebeca
“Temos as ferramentas para acalmar a inflação e apoiar todos os grupos vulneráveis. Esta é uma questão de escolhas de políticas e vontade política. Mas o atual curso de ação está prejudicando os mais vulneráveis, especialmente nos países em desenvolvimento, e corre o risco de levar o mundo a uma recessão global”, afirma Grynspan.
As perspectivas estão piorando, e o PIB real pode ficar ainda abaixo de sua tendência pré-pandemia até o final do próximo ano e um déficit acumulado de mais de US$ 17 trilhões -- perto de 20% da renda mundial.
Os países de renda média da América Latina, bem como os países de baixa renda da África, registrarão algumas das desacelerações mais acentuadas este ano.
O relatório observa que os países que estavam mostrando sinais de sobre-endividamento antes da Covid estão sofrendo alguns dos maiores golpes com Zâmbia, Suriname, Sri Lanka e Paquistão com choques climáticos ameaçando ainda mais a estabilidade econômica.
Os fluxos líquidos de capital para países em desenvolvimento tornaram-se negativos com a deterioração das condições financeiras desde o último trimestre de 2021, diz o relatório. Na liquidez, os países em desenvolvimento estão agora financiando os desenvolvidos.
Tesouro dos Estados Unidos
Cerca de 90 países em desenvolvimento viram suas moedas enfraquecerem em relação ao dólar este ano – mais de um terço deles em mais de 10%; as reservas cambiais estão caindo e os spreads de títulos estão aumentando, com um número crescente apresentando rendimentos 10 pontos percentuais acima dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos.
Atualmente, 46 países em desenvolvimento estão severamente expostos a múltiplos choques econômicos e outros 48 seriamente expostos, aumentando a ameaça de uma crise global da dívida.
O relatório conclui que a situação nos países em desenvolvimento é muito mais tênue do que o reconhecido pelo G20 e outros fóruns financeiros internacionais, com conversas sobre uma rede de segurança financeira global cada vez mais em desacordo com sua realidade.
Os países em desenvolvimento já gastaram cerca de US$ 379 bilhões em reservas para defender suas moedas este ano, quase o dobro da quantidade de novos Direitos Especiais de Saque (Special Drawing Rights, ou SDR na sigla em inglês) recentemente alocados a eles pelo Fundo Monetário Internacional, e também sofreram um impacto significativo da fuga de capitais.
Assistência ao Desenvolvimento
A Unctad pede o aumento da Assistência Oficial ao Desenvolvimento, ODA na sigla em inglês, um uso maior, mais permanente e mais justo dos SDRs, mecanismos de hedge (estratégia de redução de riscos) para lidar com a volatilidade da taxa de câmbio e maior alavancagem do capital multilateral para apoiar os países em desenvolvimento com programas sociais abrangentes.
Mas, além disso, o progresso em um quadro legal multilateral para lidar com a reestruturação da dívida, incluindo todos os credores oficiais e privados, deve ser uma prioridade.
O relatório recomenda um programa de reformas nas economias em desenvolvimento para aumentar o investimento produtivo e restringir o movimento de capital que explora as brechas fiscais, juntamente com novos arranjos para apoiar o comércio, o investimento e os laços financeiros regionais.
Nos países desenvolvidos, a inflação tem sido impulsionada principalmente pelos preços das commodities – especialmente energia – e gargalos persistentes nas cadeias de suprimentos, com raízes no investimento insuficiente desde a crise financeira global. As medidas de inflação que excluem a energia são consideravelmente inferiores à inflação dos preços ao consumidor.
Em muitos países em desenvolvimento, a inflação foi em grande parte impulsionada pelos preços da energia e pela depreciação da taxa de câmbio, o que tornou as importações mais caras.
Austeridade é aposta perigosa
Grandes corporações multinacionais com considerável poder de mercado parecem ter aproveitado indevidamente o contexto atual, elevando as margens para aumentar os lucros.
Nessas circunstâncias, diz o relatório, remontar à década de 1970 ou a décadas posteriores marcadas por políticas de austeridade em resposta aos desafios de hoje é uma aposta perigosa.
“O verdadeiro problema enfrentado pelos formuladores de políticas não é uma crise de inflação causada por muito dinheiro para poucos bens, mas uma crise de distribuição, com muitas empresas pagando dividendos muito altos, muitas pessoas sobrevivendo com o salário mês a mês e muitos governos sobrevivendo com cada pagamento de títulos”, disse Richard Kozul-Wright, chefe da equipe responsável pelo relatório.
Com a inflação já começando a diminuir nas economias avançadas, a Unctad pede uma correção de curso em favor de políticas visando picos de preços de energia, alimentos e outras áreas vitais diretamente.
Ucrânia e preço dos alimentos – Iniciativa Grãos do Mar Negro
A Iniciativa Grãos do Mar Negro (Black Sea Grain Initiative), liderada pelas Nações Unidas, teve um impacto significativo na redução dos preços dos alimentos – o Índice de Preços dos Alimentos da FAO caiu pelo quinto mês consecutivo para 138 em agosto de 2022, atingindo o nível mais baixo em sete meses, devido a uma queda generalizada no custo dos alimentos.
Os preços dos cereais caíram 1,4%, liderados por uma queda de 5,1% nos preços internacionais do trigo ligada à retomada das exportações dos portos do Mar Negro na Ucrânia pela primeira vez em mais de cinco meses de interrupção.
No entanto, o relatório destaca a necessidade de maior apoio a grupos vulneráveis, incluindo trabalhadores com salários mais baixos e famílias em dificuldades financeiras, alertando para os danos que o aperto monetário está causando aos objetivos econômicos, sociais e climáticos, atingindo mais duramente os mais pobres.
Mercados de commodities turbulentos há uma década
Os preços das commodities subiram durante grande parte dos últimos dois anos, com alimentos e energia mais caros representando desafios significativos para as famílias em todos os lugares. A pressão adicional de alta sobre os preços dos fertilizantes significa que o dano pode ser duradouro.
A guerra na Ucrânia contribuiu para essa situação, mas os mercados de commodities estão em um estado turbulento há uma década. De acordo com o relatório, pouca atenção foi dada ao papel dos especuladores e dos frenéticos de apostas desencadeados por sua enorme presença em contratos futuros, swaps (permuta financeira) de commodities e fundos negociados em bolsa.
Sinais de alerta ligados
De acordo com o relatório, as múltiplas crises que a economia global enfrenta atualmente estão conectadas por uma agenda política que falhou em suas principais promessas de proporcionar estabilidade econômica e impulsionar o investimento produtivo, tanto público quanto privado.
Com os sinais de alerta ligados em uma série de indicadores econômicos e ambientais, reivindicar o futuro com políticas inovadoras e ambiciosas, vontade política e apoio público e privado é um pré-requisito para alcançar metas de desenvolvimento ambiciosas, aponta o documento.
O relatório apresenta uma estratégia de maior cooperação entre os países em desenvolvimento que, juntamente com reformas na arquitetura multilateral, pode ajudar a levar a economia global na direção certa.
*Com informações da Unctad, Genebra.