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Chefe de investigação para Mianmar diz que birmaneses almejam justiça BR

Refugiados da minoria Rohingya na fronteira entre Myanmar e Bangladesh.
Unicef/Brown.
Refugiados da minoria Rohingya na fronteira entre Myanmar e Bangladesh.

Chefe de investigação para Mianmar diz que birmaneses almejam justiça

Direitos humanos

Há cinco anos, uma repressão sangrenta no país asiático forçou 1 milhão de pessoas da minoria rohingya a buscar abrigo em Bangladesh, o país vizinho; nesse momento, um mecanismo internacional investiga alegações de violações graves de direitos humanos.

A justiça internacional pode tardar, mas acaba chegando também para os poderosos. Com essas palavras, Nicholas Koumjian, um dos promotores internacionais mais conhecidos pelo sistema das Nações Unidas, resumiu a situação da minoria rohingya e os processos contra autoridades e outras partes acusadas de graves violações de direitos humanos.

A minoria de origem muçulmana foi alvo de uma perseguição sistêmica em Mianmar, o que levou a um êxodo massivo para o país vizinho, Bangladesh.

 Milhares de refugiados de Rohingya estão vivendo no campo de refugiados de Hakimpara em Bazar de Cox, Bangladesh.
Ocha/Vincent Tremeau
Milhares de refugiados de Rohingya estão vivendo no campo de refugiados de Hakimpara em Bazar de Cox, Bangladesh.

Inquéritos em várias instâncias

Desde a criação do Mecanismo Investigativo para Mianmar, pelo Conselho de Direitos Humanos, o chefe da tarefa, Nicholas Koumjian, tem se debruçado sobre páginas e páginas de evidência para apoiar inquéritos em curso em várias instâncias. Ele conversou com a repórter Dianne Penn, da ONU News em inglês, e falou sobre os casos mais preocupantes.

Ele comenta numa variedade de crimes que preocupam e que vão do uso desproporcional da força no combate ao emprego de força letal contra manifestantes sem qualquer justificativa. Existem ainda relatos de crimes em prisões e violência sexual contra mulheres e homens. O promotor já atuou em nações como Serra Leoa, no Camboja, na ex-Iugoslávia e até no país de língua portuguesa, Timor-Leste.

Crianças rohingya em Cox's Bazar, Bangladesh, durante a época das monções.
Unicef/UN0213967/Sokol
Crianças rohingya em Cox's Bazar, Bangladesh, durante a época das monções.

Charles Taylor e Slobodan Milosevic condenados

O Mecanismo Investigativo para Mianmar foi formado pelo Conselho de Direitos Humanos para documentar crimes cometidos no país incluindo os associados ao golpe militar de fevereiro de 2021. Para Koumjian, um dia, Mianmar conhecerá a justiça. E não só no caso da minoria rohingya, na antiga Birmânia, mas em outros casos, não se deve esmorecer.

O promotor lembrou que quando o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, foi indiciado, ele ainda estava no poder. E mesmo após todos pensarem que a mudança para a Nigéria seria a garantia da impunidade, Taylor foi julgado e condenado. Hoje, cumpre uma sentença de 50 anos.

Ele também citou os casos dos integrantes do Khmer Vermelho no Camboja e até a prisão do ex-líder iugoslavo, Slobodan Milosevic. Para o promotor, a justiça internacional pode se movimentar lentamente, mas acaba ocorrendo.

Refugiados rohingya cruzando a fronteira para o Bangladesh
Acnur/ Roger Arnold
Refugiados rohingya cruzando a fronteira para o Bangladesh

Leia a íntegra da entrevista a Dianne Penn, da ONU News:

 

Nicholas Koumjian: A criação do nosso Mecanismo foi certamente motivada, em grande parte, pela operação de 2017 e o êxodo de tantos rohingyas, mas esse não foi o único evento. Então, desde o golpe de Estado em Mianmar, temos visto uma violência crescente, especialmente pelo regime e todos os alinhados a ele, e contra os que se opuseram ao golpe. Também vimos episódios de violência por todos os lados, e isso nos preocupa bastante. Mais e mais, vemos aldeias sendo incendiadas por militares, detenções em massa no que se diz serem julgamentos que não obedecem a qualquer critério básico de um processo. Temos muitos relatos de tortura e prisões, pessoas sendo forçadas a deixar suas casas por causa de temores deste conflito. É uma campanha massiva de crimes que ainda ocorrem, e estamos tentando coletar provas para que um dia possamos contribuir com os esforços de justiça.

ONU News: Com relação a todas as provas já coletadas, existem 2 milhões de itens de evidências ou mais?

NK: O total de itens que coletamos e isso reúne testemunhos, declarações, fotos, vídeos, alguns vídeos gravados no momento dos acontecimentos, são muitos documentos. Temos milhões de páginas. São mais de 2 milhões, e isso inclui bastante material retirado de redes sociais que acreditamos representar uma informação relevante. Então, temos uma variedade de crimes que nos preocupam, que vão do uso desproporcional da força no combate ao emprego de força letal contra manifestantes sem qualquer justificativa. Vemos relatos de crimes em prisões. E estamos muito, muito preocupados com relatos de violência sexual contra homens e mulheres. Estamos agora buscando o que poderia ser uma ligação com quem seria responsável por esses crimes. Então, entre as coisas que examinamos, eu mencionei a mídia social. Estamos analisando casos em que aparenta haver campanhas para incitar a violência, ao ódio contra um grupo ou ao medo de um grupo na esperança de levar à violência contra aquelas pessoas. Estamos interessados nisso e examinando, coletando e analisando as evidências. É um trabalho gigantesco que temos pela frente. E claro, a maior parte dessas provas, ou quase tudo, está em birmanês ou em outras línguas de Mianmar. Então, dependemos dos recursos que temos, daqueles que trabalham conosco e são proficientes nessas línguas, também usamos, às vezes, softwares de tradução. Mas tudo isso é bem desafiador, e estamos tentando ser inovadores na forma como lidamos com essa tarefa de coletar evidência, tendo em vista os desafios que o Governo de Mianmar e as autoridades do país impõem pelo fato de não cooperar conosco. Nem as autoridades atuais nem as anteriores nos permitiram entrar no país ou concordaram em responder o nosso pedido de informação. Então, não estamos falando de uma investigação pena normal. Normalmente, você vai à cena do crime, interroga todos os envolvidos. Aqui, não podemos fazer isso. Mas somos treinados para ser inovadores na forma como coletamos essas informações.

ONU News: O sr. falou em milhões de evidências, o que leva a crer que as pessoas estão falando o que sabem. Mesmo assim, o senhor falar em dificuldades. As pessoas têm testemunhado de forma livre, ou seria necessário outro apelo para que possam falar?

NK: Bom, as únicas pessoas com quem conversamos são as que querem falar. Todas as nossas interrogações são voluntárias. Pedimos às pessoas que compartilhem conosco as evidências, e não tentamos coagir ninguém a fazer isso. Não temos uma autoridade especial em qualquer jurisdição para fazê-lo. Então tudo é voluntário.  Mas o que sentimos é que existe um grande desejo nas pessoas de Mianmar de ver a justiça sendo feito, e essas pessoas querem que a verdade seja conhecida. Temos muita gente que nos procura com informações, às vezes documentos, e o fazem sob um grande risco para elas próprias. Elas entendem esses riscos. Nós fazemos tudo o que podemos para tratar a todos de uma forma segura. E temos informações na nossa página na internet, por exemplo, de como nos contatar (www.iimm.un.org) de forma segura. Claro, não recomendamos que as pessoas nos telefonem ou nos enviem um e-mail  por causa do risco de que essa comunicação seja interceptada. Colocamos a segurança dos que cooperam conosco como uma prioridade.

ONU News: E agora, com as provas coletadas, a esperança é que um dia a justiça seja feita, mas o Mecanismo não pode fazer isso.

NK: Correto. O Mecanismo não é um tribunal. Não somos sequer uma Promotoria ou Polícia. Não podemos prender ninguém ou indiciar uma pessoa, e não temos um tribunal para julgar ninguém. Mas isso não é o nosso mandato. Nosso mandato é coletar as evidências e preservar o material de uma forma que possa ser usado hoje ou daqui a muitos anos. E também preparamos os arquivos de uma maneira que possa ser partilhado com a justiça que tenha jurisdição para processar esses casos e achar os responsáveis pelos crimes em Mianmar. E temos tido sorte de que três processos neste momento contam com nossa cooperação. Primeiro, existe uma investigação no Tribunal Penal Internacional, TPI. Esta é focada no que aconteceu no estado de Rakhine aos rohingya ali. E está baseada no fato de que essas centenas de milhares de pessoas que fugiram de suas casas, especialmente em 2017, quando cruzaram a fronteira com Bangladesh, o crime de deportação através da linha de fronteira foi completado. E então, eles estavam no território bengalês, que é um Estado-parte, membro do TPI, que assinou o tratado. Com isso, os juízes consideraram que a corte tem jurisdição sobre esses crimes que motivaram a fuga de Mianmar. Daí, a investigação do TPI está em curso e nós cooperamos com eles levando evidência. Paralelo a isso, temos o julgamento na Corte Internacional de Justiça, que não é um tribunal penal. É, como sabemos, a maior corte da ONU e ouve disputas entre os Estados-membros. E no caso da Gâmbia, em nome da Organização dos Estados Islâmicos, protocolou o caso em que a Gâmbia firmou a Convenção, e diz que Mianmar não cumpriu suas obrigações com a Convenção. Não cumpriu suas obrigações de prevenir e punir o genocídio. Então, isso é, claro, um caso muito importante, importante para as vítimas e para outros ao redor do mundo. E aqui, estamos tentando ajudar com provas para que os juízes possam ter as melhores evidências e possam tomar uma decisão baseados no que realmente ocorreu. E continuaremos examinando formas de compartilhar evidências que possam ser úteis para as audiências. E finalmente, existe já uma investigação nacional. Trata-se de uma queixa protocolada na Argentina por pessoas da etnia rohingya incluindo seis mulheres de acampamentos de refugiados em Bangladesh. Elas alegam que foram vítimas de crimes internacionais sérios, crimes contra humanidade e genocídio. E, de acordo com a lei argentina, os tribunais do país são obrigados a investigar isso. Se chega ao nível de crimes contra a humanidade. Então, eles abriram o inquérito lá.  E nós estamos em contato com as autoridades e já expressamos nossa prontidão para compartilhar evidência e estamos preparados incluindo com a tradução do material para espanhol, que é necessário para as audiências.

ONU News: Vamos voltar para os rohingya em Mianmar. Muito coisa aconteceu nesses cinco anos. Claro, o Mecanismo surgiu em 2019, o que é positivo, mas existem muitos outros desafios no mundo. Tivemos Afeganistão, a pandemia, as crises na Síria, no Iêmen, a emergência climática... O sr. acredita que as pessoas esqueceram da crise dos rohingya, após esses cinco anos?

NK: Bom, eu acho que isso é natural.  Não culpamos ninguém por isso. Mas a crise faz manchete quando ela ocorre, quando quase 1 milhão de pessoas fugiram do país. E todos são muito empáticos e preocupados com o sofrimento de deixar suas casas e a violência que sofreram. Mas o sofrimento não acaba aí. Eles ainda não puderam retornar à casa. E hoje, cinco anos depois, tem-se por exemplo uma menina de nove anos que terá passado mais tempo no exílio do que em seu país. Eles podem não se lembrar de seu lar.  E, claro, para a comunidade permanecer uma comunidade, os rohingya tem sua própria língua, seus costumes, e querem viver juntos, em casas permanentes, onde nasceram. Então, é natural que a atenção do mundo se volte a outras crises e guerras, e pandemias e falta de alimento, mas é importante lembrar que este sofrimento não acabou, e nós não podemos esquecer deles. Todos devemos isso aos rohingyas: fazer algo que possa aliviar a situação deles, que é insustentável. O Governo de Bangladesh tem sido muito generoso ao oferecer refúgio. Mas Bangladesh é um país pobre, e não é a casa deles. A cada deles é em Mianmar. Então, nós temos que criar as condições que permitam a eles retornar em segurança, de uma fora digna para escolher voltar para casa e reconstruir suas comunidades e reconstruir seu país. Mianmar tem um grande potencial. Caso consiga um dia se livrar do ciclo de violência e impunidade.

ONU News: E quão otimista, o senhor está em termos de perseguir a justiça, mas também de repatriação.

NK: Estou relativamente otimista de fazer meu trabalho porque o fazemos na esperança de que ajudará. E eu sei que é visto como sem esperança, ou algo para um futuro distante, mas eu vi em outros casos que o mecanismo da justiça internacional pode se movimentar lentamente, mas é muito eficiente. Eu trabalhei no caso de Charles Taylor, condenado por crimes de apoio a rebeldes na Serra Leoa. Ele foi indiciado ainda no posto de presidente da Libéria, e depois foi para a Nigéria, no que parecia ser uma aposentadoria confortável, e que ninguém poderia botar a mão nele, mas acabou sendo preso e hoje cumpre uma sentença de 50 anos pelos crimes que cometeu.  Antes de atuar com Mianmar, eu trabalhei no tribunal do Khmer Vermelho. E em 2019, no último ano, eu estava lá, quando conseguimos um veredicto contra o ex-chefe de Estado e o número dois do partido por causa dos crimes que cometeram entre 1075 e 1979: 40 anos entes. Mas a justiça internacional, pudemos constatar muitas vezes, pode parecer impossível, mas se tornar possível. Ninguém imaginava que Slobodan Milosevic seria preso quando foi indiciado. Ele era o líder da Iugoslávia, o chefe de Estado, mas acabou preso e levado a julgamento.

ONU News: Muito obrigada por falar conosco.