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Entrevista: General do Brasil assume comando da Missão da ONU na RD Congo BR

Residentes na região de Beni cumprimentam os soldados de paz da Monusco
ONU/Sylvain Liechti
Residentes na região de Beni cumprimentam os soldados de paz da Monusco

Entrevista: General do Brasil assume comando da Missão da ONU na RD Congo

Paz e segurança

General Marcos de Sá Affonso da Costa já foi boina-azul em Angola e atuou com Exército brasileiro no Peru e na França; em entrevista à ONU News, ele disse que pretende ampliar pelotão das selvas e o número de mulheres militares no país africano.

ONU News: A ONU News em Nova Iorque tem o grande prazer de receber aqui o nosso convidado de hoje, general Affonso da Costa, ou general Affonso como ele é conhecido no Brasil, que vai assumir uma das maiores operações de paz da ONU no mundo, a Monusco. A Força da ONU na República Democrática do Congo. E ele assume após um outro general brasileiro, o general Costa Neves, que deixou a força no mês passado. Bem-vindo e parabéns pela sua nomeação.

General Affonso da Costa: Olha, o prazer é todo o meu. Realmente é uma satisfação de estar com todos vocês. E também muito honrado em ter recebido essa nomeação, essa designação tão relevante para o nosso país, enfim para mim e toda a estrutura da ONU.

Entrevista: General do Brasil assume comando da Missão da ONU na RD Congo

 

ON: O sr. já foi boina-azul, esta será a sua segunda missão. O sr. já esteve em Angola. Mas como será voltar à África e voltar para comandar uma missão com mais de 13 mil integrantes de 50 países, homens e mulheres?

GAC: Homens e mulheres. Olha, eu estive em Angola, uma das coisas que foi muito boa na minha carreira. Eu tive a oportunidade de ali conviver. Nós estávamos na Unavem-3, foi a missão de verificação, eu estive lá entre 1996 e 1997. É claro que é um quadro diferente do que eu vou encontrar no Congo. Até porque as missões evoluíram muito. E ali era uma verificação de cessar-fogo entre as partes envolvidas no conflito naquele país. Mas claro que a estrutura de ter  trabalhado na ONU, há um fio condutor em tudo isso ao longo do tempo que será muito útil lá para a Missão no Congo. Mas o que eu guardo também com muito carinho é a diversidade cultural, né? Eu convivi ali na época. Eram pouco mais de 30 países na Missão: civis e militares, mulheres e homens ali, e o povo, né? Eu tive a função de oficial de ligação junto às estruturas militares do país. Então foi muito bom também trabalhar com aquele país amigo. Uma missão tão importante. Outra coisa que também é, eu acho que é uma coisa de família. Meu pai foi boina-azul também. Foi capacete azul. Você vê que a tradição nossa em missões de paz, os brasileiros... Ele esteve lá na UNEF, a Força de Emergência das Nações Unidas no Canal de Suez, depois da crise de Suez, que separou o Egito de Israel. Ele esteve entre 1959 e 1960. E me contava muito na minha adolescência, juventude, como foi aquilo. É mesmo uma imersão cultural de vida, de ganho pessoal, e ganho evidentemente profissional. Um militar que vai para uma missão dessas, ele retorna com outros conhecimentos. E graças a Deus, no meu caso, eu pude aplicar bem isso aqui no Brasil. Eu trabalhei em estruturas de prontidão, que nós tínhamos já na época, e temos até hoje, mais evoluídas. De tropas nossas para missão de paz, de preparar gente para as forças de paz, obviamente que a experiência em Angola foi interessante.  Ela vai me servir pelo menos pelo lado da diversidade cultural, de tão rico que é a ONU, com certeza.

 

Entre 1996 e 1997, o general Affonso da Costa foi servir à ONU na Missão de Verificação em Angola, Unavem-3
Arquivo pessoal
Entre 1996 e 1997, o general Affonso da Costa foi servir à ONU na Missão de Verificação em Angola, Unavem-3

ON: E essa experiência em Angola ela ocorreu num contexto interessante já que o senhor falava a língua portuguesa. Já na RD Congo, o sr. vai usar o francês, que é uma língua que o sr. fala, mas também o inglês e o português. Nós vamos falar da operação na selva (com os brasileiros) daqui a pouco.
Mas ao saber que seu pai também foi boina-azul, este interesse pela ONU, por língua estrangeiras, começou lá trás então? Como o sr. passou a se interessar por essa diversidade, pelo mundo, como integrante do Exército Brasileiro mas com os olhos no mundo?

GAC: Olha, é uma coisa interessante o que você me pergunta agora porque volta e meia a gente percebe ali... Eu tive muito incentivo na minha juventude para o estudo de línguas, para trabalhar com isso. Eu logo que entrei no Exército, eu fiz uma prova interna, onde você mostra um conhecimento básico sobre um idioma. E ali eu fiz, como tenente, para o idioma inglês e fui habilitado. E ali me deu algumas alternativas de ter feito treinamento com países de língua inglesa, particularmente com os Estados Unidos. Eu tive algumas oportunidades de estar com este país amigo do Brasil. E o inglês também foi um pré-requisito para poder ir à Missão da ONU, mais à frente, como capitão, que foi o caso de Angola. Como todos nós sabemos, apesar da língua do país ser o português, a seleção é no idioma em inglês. Você veja que uma coisa vai puxando a outra, né? A experiência com a França foi um pouquinho mais à frente, e também pela coisa em casa e ao longo do tempo... O Exército incentiva muito (o ensino de idiomas). As Forças Armadas incentivam muito que as pessoas procurem conhecer outros idiomas. Aqui no nosso país, no Brasil, como você sabe o espanhol é muito, até pelos nossos vizinhos, é muito buscado nas escolas onde os jovens, as crianças já estudam um pouco do espanhol. O francês um pouco menos. Já foi uma geração anterior a minha. Se estudou mais. Mas eu tive a oportunidade de estudar um pouco por mim mesmo. Eu aí eu tive outra grande oportunidade de ir para a França. E ali é claro que ali você desenvolve o francês, um pouco enferrujado, mas com o tempo...

 

No início deste mês pelo menos 57 pessoas foram assassinadas em Ituri
Monusco
No início deste mês pelo menos 57 pessoas foram assassinadas em Ituri

ON: Bom, mas falando da expectativa para a República Democrática do Congo porque o leste do país ainda enfrenta uma questão de insegurança muito grande. O sr. vai comandar as forças. Como é a sua expectativa para o país. O sr. já esteve na RD Congo?

GAC: Não. Eu não tive a oportunidade. Eu já estive na faixa da fronteira quando estive em Angola. Mas não conheço efetivamente a República Democrática do Congo. Agora eu tenho estudado sobre o assunto, evidentemente, e recebido algumas informações do meu antecessor, o general Costa Neves. E eu vejo que há um progresso grande. É uma situação bastante difícil, a gente sabe disso, sobre a insegurança no leste do país. Aconteceram alguns eventos recentemente. Mas o que se vê ao longo do tempo é que há uma evolução. A ONU já tem, inclusive, algumas das províncias da República Democrática do Congo em que havia presença da ONU já não há mais necessidade. Ela já está se concentrando em três províncias do país. E indo num caminho de reduzir os seus efetivos haja vista que a situação vai melhorando com o tempo. É claro que é um contexto muito complexo. Eu não estou lá, e o que tenho feito de leituras, a minha percepção é de quem está de fora. Mas eu vejo que a ONU tem tido seus sucessos, seus avanços. A minha expectativa é a melhor possível. Eu vou procurar como quem chega de fora, assumindo o comando, procurar perseguir naquele caminho de sucesso e êxitos que têm acontecido nessa Missão ao longo do tempo. Um trabalho muito sério feito pelos meus antecessores e por todos aqueles contingentes que já passaram por lá. É claro que aquilo é um trabalho de equipe. E os militares da Força Militar, a meu ver, ela é um sustentáculo para as decisões políticas que têm que ser tomadas nos seus devidos foros, nos seus devidos momentos.
Então a nossa representante especial do secretário-geral (Bintou Keita), ela vai dar direção política para o meu trabalho. É claro a Força Militar tem um papel muito relevante para cumprir. Criar um ambiente de segurança para que os congoleses possam voltar à normalidade, possam prosseguir no desenvolvimento de seu país, a comunidade internacional, os países do entorno, ou seja que a segurança internacional, esse bem maior que a ONU zela por ele, possa ser realmente alcançada naquela região tão importante da África e do mundo. Acredito que eu tenho uma colaboração a ser feita, mas no intuito de agir como um técnico ali, juntar a nossas experiências em várias adversidades e continuar fazendo um bom trabalho. A minha expectativa é a melhor possível. Acredito que vai ser uma missão exitosa.

Com cerca de 14 mil militares de 50 países, as tropas de paz da ONU na RD Congo, Monusco, têm desafios como grupos insurgentes e armados
Monusco
Com cerca de 14 mil militares de 50 países, as tropas de paz da ONU na RD Congo, Monusco, têm desafios como grupos insurgentes e armados

 

ON: E o sr. não vai se sentir totalmente fora de casa porque ali já tem um Batalhão da Selva com militares brasileiros com treinamentos para as forças congolesas. Eu queria que o sr. falasse um pouco dessa operação, se o sr. pretende ampliá-la? E que elementos que ajudam na parte militar e que também têm um componente civil como o futebol e outras expressões que unem as pessoas, que o sr, pretende inserir no seu mandato?

GAC: Olha, tudo isso é muito bem-vindo. A primeira questão que é o apoio de instrução que está sendo feito pelos nossos instrutores de guerra na selva, é um grupo de 15 militares que estão lá. Eles estão ajudando tanto as Forças Armadas da RDC a melhorarem suas capacitações para aquele ambiente operacional específico de floresta. Nós no Brasil, temos uma expertise bastante grande pelo nosso território, né?  Metade no nosso território está na faixa equatorial, a Floresta Amazônica. E a gente tem um Centro de Instrução, que tem mais de 50 anos, e que é reconhecido internacionalmente, no meio militar, como um local realmente de um treinamento de alto nível para tropas para combate no interior da selva. E recebemos estrangeiros aqui no Brasil então um pouco dessa expertise está sendo levada para lá. Não só para as Força Armadas da RDC, mas também para as nossas tropas, o nosso contingente, particularmente a brigada de intervenção, que está se valendo dessas experiências. Então é um ganha-ganha. Acredito que esta missão deve continuar e no que for possível, se depender de mim, será ampliada. E como você falou. Existem outros campos e vertentes em que a gente tem que atuar muito.  A parte informacional e humana, ou seja, a comunicação nossa, das forças, com a população. Buscar deles as informações relevantes sobre o terreno, sobre o que está acontecendo, o que está lhes afligindo porque no final das contas é central nesse mandato, a proteção dos civis, né? Então todo esse trabalho nosso, a gente tem, naturalmente, boas experiências de resultados em operações da ONU mesmo. O Haiti é um exemplo importante. Eu tive a oportunidade de ir algumas vezes lá e ver in loco, não fui da Missão da ONU, mas indo verificar uma atuação muito interessante. Uma interligação muito grande da Missão com a população local. Isso é muito bom. Fazer entender a eles o nosso papel e que eles nos ajudem. É muito interessante. Eu acho que as mulheres têm um papel muito importante nisso. O segmento feminino do componente militar, ou seja, as mulheres capacetes azuis e boinas-azuis que possam também interagir com a população feminina e verificar dessas populações de jovens, crianças, as mulheres que são bastante vulneráveis nessa situação o que a força possa aportar, onde seria nossa atuação mais relevante. Então, eu tenho certeza que isso já é feito, mas o que eu puder também intensificar de ações nessa área, eu vou fazer.

Uma outra proposta do general Affonso da Costa na RD Congo é promover mais participação de mulheres nas forças de paz
Monusco/Kevin Jordan
Uma outra proposta do general Affonso da Costa na RD Congo é promover mais participação de mulheres nas forças de paz

 

ON: General Affonso, o senhor tocou num assunto importante, que é a questão de mulheres em forças de paz. A ONU tem se esforçado como um todo para aumentar o número de mulheres como um todo, mas também mulheres em posição de comando. Como o sr. saber, temos uma mulher general comandando uma das nossas forças, tivemos o mesmo caso no Chipre, e a ONU tem tentado incentivar esta participação. Mas como alguém que conhece tão bem este meio e chegou ao ponto máximo na carreira... Por que na sua opinião ainda existe tanta dificuldade para que as mulheres cheguem à posição de comando nessas forças militares?

GAC: Eu que tem uma decisão política muito clara, concertada, que é o momento da participação feminina em todos os níveis e principalmente nos níveis de Estado-maior e Comando. E eu acho que é para o bem de todas as operações da ONU. Eu tiro pela experiência nossa, no nosso país. Eu não sei se todos sabem, mas as nossas forças militares elas atuam também muito próximo da população civil na nossa faixa de fronteira. Nós temos um poder de polícia para ilícitos transnacionais junto a nossa faixa de fronteira do Brasil com os países vizinhos. E ali, a gente tem uma integração muito grande com a população civil. Então, através de policiamento de pessoas, de rodovias, de pontos, de bloqueios... E nós colocamos, operacionalmente falando, para dar um maior resultado, o segmento feminino, mulheres ali. E o resultado é muito grande. Então, isso eu vejo por onde eu tenho andado que há uma percepção muito próxima disso.
Agora, cada Força Armada, ela teve um momento da entrada das mulheres no seu efetivo. E, que naturalmente, por ser uma estrutura hierarquizada, elas vão, paulatinamente, ocupando os cargos. Então, pegamos o exemplo do Brasil que é o que eu posso falar com mais tranquilidade. Nós, com muito sucesso, recentemente, colocamos as nossas mulheres nas academias militares. Começou-se pela Força Aérea, depois a Marinha e agora no Exército. Essas jovens que entraram na Academia Militar, elas fazem a carreira que nós chamamos dos combatentes. Então, as mulheres que vão realmente para a classe de combatente tanto nas três Forças Armadas. E elas agora são tenentes. Elas são jovens ainda. Então elas têm um caminho a percorrer. Porém, nós já temos no Exército até o nível de coronel para aquelas que entraram no segmento da área de saúde, na área administrativa. Então é claro que a ONU vai exigir certas habilitações para o exercício de alguns cargos. Então o cargo do Brasil, ele pode se candidatar a alguns cargos de oficial júnior, vamos dizer. Mas para alguns segmentos de oficial sênior, a gente vai ter falta de gente para ocupar esses espaços. Mas vão sendo ocupados paulatinamente. E cada país vai ter sua história, né? Há países que já integraram mulheres há mais tempo, então elas têm mais oferta, naturalmente, de gente para colocar. Não há dúvida nenhuma... Só para dizer um bom exemplo: nós estamos fazendo agora em julho uma nova certificação de tropas do Brasil para estarem disponíveis para o sistema de prontidão da ONU. E nós inserimos lá, que é uma coisa para nós inédita, mas para muitos não é, uma boa prática da ONU que são aqueles pelotões de engajamento. Ou seja, são pelotões com presença apenas de mulheres para que elas, na ponta de lança, elas fiquem lá em contato com as populações civis, justamente para primeiro: dar o alento da presença da ONU, mas identificarem realmente os problemas tão graves que existem de violações de direitos humanos em cima de populações no caso das mulheres. Então, para nós é uma coisa inédita. Mas nós estamos aplicando sargentos e tenentes que são dessa linha combatente, que eu quero dizer.  Ou seja que já estão  no corpo de tropas, já estão nos batalhões, nas unidades, nos regimentos. E elas já podem assumir esse papel. Até pouco tempo atrás, nós não tínhamos ainda lideranças no nível de sargentos e tenentes para isso. Então eu acredito que o tempo também vai fazendo com que muitos países vão  podendo ocupar (os postos). Agora não há dúvida nenhuma pelo aspecto operacional ou seja do resultado lá do terreno que a presença da mulher é decisiva.  É uma necessidade que tem que ser atendida para o bem dos resultados no terreno.