Perspectiva Global Reportagens Humanas

África precisa mais do que soluções de curto prazo para se recuperar da Covid-19 BR

Cristina Duarte acredita em aumento na adoção de soluções digitais para os problemas africanos
Unosaa Reprodução
Cristina Duarte acredita em aumento na adoção de soluções digitais para os problemas africanos

África precisa mais do que soluções de curto prazo para se recuperar da Covid-19

ODS

Conselheira especial do secretário-geral da ONU para o continente, Cristina Duarte falou à ONU News sobre desafios e oportunidades para o próximo ano; segundo ela, os africanos têm a chance de reconstruir melhor após a pandemia; ex-ministra de Cabo Verde ressaltou ainda a importância de um grande esforço coletivo para combater fluxos ilícitos em África, que atingem pelo menos US$ bilhões. Leia a íntegra da primeira parte da entrevista da subsecretária-geral à ONU News.

Entrevista com a Conselheira especial do secretário-geral da ONU para a África

 

 

ONU News (ON): O encontro virtual que dirigiu recentemente nas Nações Unidas apontou valores dos fluxos financeiros ilícitos um pouco mais altos. Nós ouvíamos falar de US$ 80 bilhões anuais. Eram  US$ 50 bilhões há pouco tempo. Agora são US$ 88 bilhões fora de África por ano. Por que razão a tendência de crescimento destes valores?

Cristina Duarte (CD): Permita-me antes de eu responder diretamente à questão, o 'porquê do aumento do volume dos fluxos financeiros ilícitos em África', utilizar esta oportunidade para fazer alguma advocacy. Porque no que diz respeito à África, a equação do desenvolvimento liderada por nós africanos não será inteiramente resolvida se nós não combatermos os fluxos ilícitos. Hoje, em pleno Século 21, a problemática dos fluxos ilícitos em África é uma problemática incontornável.

Por que países desenvolvidos e em desenvolvimento não se juntam, de forma forte e inequívoca, com um discurso inequívoco, com uma estratégia inequívoca e um plano de ação inequívoco para combater os fluxos ilícitos?

Temos vindo a falar, a discutir conceitos empurrando. Uns dizem que os valores não são exatos. Outros dizem que os conceitos não são exatos. Podem continuar a falar, mas do ponto de vista das políticas públicas em África urge decidir com a informação que existe. É 50, é 80 ou é 100 (bilhões) eu acho que neste momento é um detalhe. Porque mesmo sendo 20, nem que fosse e não é. Mas assumamos que seja 20. Continua a ser uma questão incontornável.

A existência de fluxos ilícitos em África é como a ponta de um iceberg, como uma proxy. Indica a existência de problemas estruturais que têm vindo a impedir que, de facto, a gente consiga implementar a bom ritmo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Portanto, nesta equação chegou o momento que a questão fluxos ilícitos é incontornável.

Pandemia evidenciou desigualdades, fragilidades e instabilidade global.
Unsplash/Jared Sanders
Pandemia evidenciou desigualdades, fragilidades e instabilidade global.

 

As últimas estimativas apontam para aproximadamente US$ 89 bilhões. Isto é aproximadamente 4% do PIB (Produto Interno Bruto) em África. Mais: os US$ 89 bilhões são superiores ao fluxo da Ajuda Pública ao desenvolvimento. A Ajuda Pública ao Desenvolvimento está em torno de US$ 50 biliões.

Ou seja, nós recebemos US$ 50 bilhões e deixamos escapar US$ 89 bilhões. Isto deve interpelar os fazedores de políticas. Mais: nós recebemos, como investimento direto estrangeiro, aproximadamente US$ 54 bilhões, mas deixamos escapar quase US$ 90 bilhões.

Confrontando estes fluxos, a pergunta que nós africanos temos que fazer a nós próprios é: quem financia quem? E enquanto não respondermos a esta pergunta não vamos conseguir resolver a equação ou concluir o puzzle.

Mas permita-me ir um pouco mais. A questão dos fluxos ilícitos em África hoje e, particularmente do Covid-19, é uma questão incontornável. Entre 2000 e 2015, de acordo com o mais recente relatório da Unctad, os fluxos ilícitos a partir de África foram de mais ou menos US$ 836 biliões. Entre 2000 e 2015, portanto ontem, África perdeu US$ 836 bilhões.

building back better para África não pode ser só composto por soluções de curto prazo nomeadamente Suspensão da Dívida ou Aliviar a Dívida.

Nesse período 2000-2015, África estava a lutar para conseguir atingir os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio. E não conseguimos atingir. No entanto, nesse mesmo período nós deixamos escapar US$ 836 milhões.

Tem-se discutido muito sobre a sustentabilidade da dívida em África. Muito. Vamos comparar este valor com o total da dívida externa africana em termos de estoque: US$ 770 bilhões em 2018. Olhe a contradição: entre 2000-2015 África perde US$ 836, mas em 2018 o estoque da dívida externa africana é de US$ 770 bilhões. Pergunta-se: quem financia quem?

Portanto, África é claramente um credor líquido do mundo. Claramente. E se não enfrentarmos este problema, não vamos conseguir enfrentar outros: Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, sustentabilidade da dívida pública, investir nas nossas instituições para termos um controlo do nosso território, em termos geográficos, e estarmos em condições de responder rapidamente às ameaças do financiamento do terrorismo.

Mas há uma outra questão: é este um problema só africano? Exclusivamente africano? Não. Este é um problema global. O relatório diz que em termos de evasão fiscal, a nível global, colocando países desenvolvidos e países em desenvolvimento, a evasão fiscal a partir das multinacionais varia entre US$ 500 bilhões e US$ 600 bilhões anualmente. Então, não estamos perante um problema exclusivamente africano. Estamos perante um problema global.

A pergunta que temos que nos pôr agora é: por que países desenvolvidos e em desenvolvimento não se juntam, de forma forte e inequívoca, com um discurso inequívoco, com uma estratégia inequívoca e com um plano de ação inequívoco para combater os fluxos ilícitos?

Por que é que aumentam? Aumentam porque pouco ou nada se fez. E o fazer implica um fazer global, não pode ser só a África. É um fazer global, por isso é que aumentaram e se calhar continuarão a aumentar.

Relatório mostra que mais esforços são necessários para enfocar a educação digital e financeira e a conscientização do cliente
ONU News/ Daniel Dickinson
Relatório mostra que mais esforços são necessários para enfocar a educação digital e financeira e a conscientização do cliente

 

ON: E na linha da sua resposta falava de uma solução possível para que o continente colha os melhores benefícios destes fundos. Tem outras, que na sua posição como subsecretária-geral, poderá sugerir ao secretário-geral António Guterres e contribuir para que África tenha um melhor cenário no futuro.

CD: Na questão dos fluxos ilícitos eu espero ter dado números suficientes para sustentar a minha posição: é uma questão incontornável. Chega de tapar o sol com a peneira. Agora, é preciso que a gente tenha consciência do custo de oportunidade em termos sociais e em termos económicos. Como é evidente, os fluxos ilícitos não são exclusivamente financeiros. África é vítima de uma atividade intensa de contrabando de medicamentos. E todo o mundo sabe.

A quantidade de medicamentos que se vendem nos mercados africanos abaixo dos standards e das regras normativas é imensa. É um negócio de bilhões. Segundo estimativas, o comércio de medicamentos contra a malária em regime de contrabando, abaixo dos standards internacionais, parece que em 2013 terá provocado a morte de 100 mil crianças na África Subsariana. Isto para já é uma questão humanitária, mas é sobretudo uma questão moral que deve interpelar todos aqueles que estão na arena global das políticas globais. Isto é uma questão bastante complexa.

Há corrupção. Mas como é que se combate? Todo o mundo sabe. Com transparência.

E que no caso africano, eu vou usar a minha experiência como formuladora de políticas, indica essencialmente uma grande fraqueza das instituições africanas.  A existência destes fluxos ilícitos a mim diz que estamos longe de controlar os fluxos económicos e os fluxos financeiros. Ou seja a arena das políticas públicas dos fazedores de política em África está longe de controlar os fluxos económicos e financeiros. E enquanto não controlarmos os fluxos económicos e não controlarmos os fluxos financeiros este valor vai aumentar.

E mais: pelo facto de não controlarmos os fluxos económicos teremos sempre uma posição marginal nas cadeias de valor global. Seremos eternamente os fornecedores de matérias-primas, cujas receitas estão sendo massivamente utilizadas para a contratualização da dívida pública, para infraestruturar o país, e muitas vezes em infraestruturas que não sejam o cash-flows e os impactos económicos esperados. O Objetivo de Desenvolvimento 16 para mim é crucial pelo menos no caso de África.

Nós temos que dar importância a estes ativos intangíveis. As estradas são importantes, as pontes são importantes e os aeroportos são importantes. Mas se não investirmos nas instituições, para ter a certeza que o aeroporto foi dimensionado como devia ter sido dimensionado, para gerar os cash-flows que devia gerar e servir a dívida que se utilizou para se fazer o aeroporto. Enquanto não tivermos uma instituição que trata da manutenção das estradas e nem mecanismos de financiamento sustentável daqui a 10 anos vamos ter que reinvestir na rede de estradas em África. Outro elemento incontornável desta equação é o papel das instituições.

Na recuperação da crise de saúde, os altos funcionários da organização destacaram como veem sendo adaptadas as operações
Foto: Unodc
Na recuperação da crise de saúde, os altos funcionários da organização destacaram como veem sendo adaptadas as operações

 

ON: Está a falar da corrupção no continente?

CD: Claro, todo o mundo sabe que há corrupção. Há corrupção. Mas como é que se combate? Todo o mundo sabe. Com transparência. E como é que se institui práticas guiadas pela transparência? Investindo nas instituições. As instituições é que fazem da gestão da coisa pública uma gestão transparente, centrada no capital humano e essencialmente para servir às populações de uma maneira geral, mas particularmente as populações vulneráveis.

Eu digo mais: estamos a falar do build back better ou recovering better,  o depois do Covid-19. Se os fluxos ilícitos não fizerem parte da equação. Se as instituições não fizerem parte da equação, não vamos conseguir. Porque o build back better para África não pode ser só composto por soluções de curto prazo, nomeadamente Suspensão da Dívida ou Aliviar a Dívida.

Hoje, em pleno século 21, a problemática dos fluxos ilícitos em África é uma problemática incontornável.

No curto prazo essas medidas de debt expansion e debt relieve ou a iniciativa do G20 Dssi (sigla em inglês para Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida) são de extrema importância, mas estão desenhadas para ajudarem a resolver um problema de curto prazo que é um problema de liquidez.  Mas não estão desenhadas para resolver o problema do financiamento, que é de médio e longo prazo. Do financiamento em termos da sua sustentabilidade. Não é com debt relief,  debt suspension ou swaps ou todas essas funções técnicas.

building back beter exige, sim, soluções de curto prazo: liquidez. Para se resolver o problema da liquidez porque os governos têm que pagar salários como é evidente. Tiveram que aumentar as suas redes de proteção social. Tiveram que investir em seus sistemas de saúde a curto prazo.

E depois de junho de 2021? E depois de dezembro de 2021, quando estas medidas do curto prazo pura e simplesmente caducarem porque chegaram ao seu limite temporal? Onde estão as soluções que devem ser identificadas? Eu acredito que estejam a ser identificadas para afrontar este problema numa perspetiva de médio e longo prazos ou financiamento para o desenvolvimento.

Fim da primeira parte da entrevista.

Subsecretária-geral crê que capital humano deve ser o epicentro das políticas públicas em África.
ECA
Subsecretária-geral crê que capital humano deve ser o epicentro das políticas públicas em África.