ESPECIAL: Moçambique em reconstrução para resistir à mudança climática
Oito meses depois da passagem do primeiro ciclone de 2019, ONU News apresenta segunda parte da série sobre resposta a desastres; país é o segundo mais vulnerável aos efeitos das alterações do clima; reconstrução requer US$ 3,2 mil milhões.
Em setembro de 2018, um sistema de 11 quilômetros de canais e bacias de retenção foi inaugurado na cidade da Beira, na província de Sofala. A segunda maior cidade de Moçambique fica abaixo do nível do mar.
O novo sistema de drenagem é parte de um projeto de US$ 120 milhões, apoiado pelo Banco Mundial para proteger a cidade das cheias e da subida dos oceanos.
A 15 de março, quando o ciclone Idai atingiu a cidade, os canais ajudaram a salvar a vida de muitos dos seus 500 mil habitantes. Ainda assim, mais de 600 pessoas morreram. Cerca de 90% da infraestrutura deste centro urbano foi danificada.
O vereador para o Desenvolvimento Humano e Institucional, José Manuel Moisés, disse à ONU News que o dano “podia ter sido muito pior”, mas que “o novo sistema ajudou a controlar as cheias.” Agora, o representante diz que “a cidade precisa avançar com a segunda fase do projeto.”
A nova infraestrutura teve a visita do secretário-geral da ONU, António Guterres, durante a sua viagem ao país em julho. Enquanto recebia a explicação sobre o impacto dos canais na noite do ciclone, o chefe da ONU disse que o projeto era um exemplo que ajuda a criar aquilo que as Nações Unidas chamam de resiliência.
Para o secretário-geral, esse objetivo deve estar presente em todos os esforços de reconstrução. Guterres lembrou que “Moçambique não contribui para o aquecimento global”, mas “é o segundo país do mundo mais vulnerável em relação às consequências das alterações climáticas.”
Resiliência
Depois de visitar os canais, o secretário-geral foi até ao prédio da sede municipal da Beira. Subiu até ao terraço do edifício, olhou em volta para a destruição, e disse aos jornalistas que “está à vista, exatamente, o significado destas palavras.”
Depois dos ciclones Idai no centro e Kenneth no sul, Moçambique avaliou suas necessidades pós-desastres. De acordo com a pesquisa, o país precisa de US$ 3,2 mil milhões para reconstruir as zonas atingidas. Em junho, durante uma conferência de doadores, foram prometidos cerca de US$ 1,2 mil milhões.
A avaliação de necessidades revelou que “o impacto negativo das alterações climáticas é agora uma realidade cada vez mais presente” e essa situação “deve ser considerada no presente e no futuro.”
Segundo a pesquisa, estes desastres naturais “são uma oportunidade para mudar o paradigma de desenvolvimento do país e criar uma cultura de resiliência a todos os níveis.”
Costa
No total, a cidade da Beira precisa de nove bacias de retenção, ligadas entre si por um sistema de canais. Em caso de inundação durante maré cheia, estas bacias guardam as águas, protegendo a população. A segunda fase está agora em desenvolvimento.
Outra grande prioridade é a proteção costeira, disse o vereador José Manuel Moises. Segundo ele, “a cidade está em perigo” devido aos danos causados pelo ciclone Idai.
O investimento é ainda mais importante porque, segundo estimativas das Nações Unidas, a população da cidade deve duplicar nos próximos 10 a 15 anos.
“Neste contexto, ondas de dois a três metros podem, sim, inundar a cidade. Tendo em conta a consideração os danos que tivemos ao longo da orla marítima, estamos precisando de uma grande intervenção de proteção costeira.”
Segundo o Plano Municipal de Recuperação e Resiliência da cidade da Beira, são necessários US$ 284 milhões para completar estes investimentos.
Mudança climática
Mesmo antes dos ciclones de 2019, Moçambique já sofria com os efeitos da mudança climática.
A temperatura anual no país aumentou 0,6˚C entre 1960 e 2009, enquanto o nível de chuvas diminuiu. O aumento do nível do mar deve exceder 30 centímetros até 2090, com consequências significativas para os 60% de moçambicanos que vivem em áreas de baixa altitude junto da costa.
Segundo o governo moçambicano, o aumento do nível do mar poderá aumentar cinco vezes as perdas econômicas de inundações nas principais cidades costeiras em cerca de uma década. A secas intensas também devem diminuir o rendimento das colheitas em 11% até 2030.
Infraestruturas
Outro dos locais visitados por António Guterres foi a Escola 25 de Junho. O estabelecimento de ensino tem cerca de 5 mil alunos, entre os cinco e os 14 anos. As aulas começam às seis da manhã e estão distribuídas por três turnos. Cada sala de aula acolhe cerca de 90 alunos.
A escola teve vários pavilhões danificados pelo ciclone. Os telhados foram arrancados pela força do vento e os alunos agora aprendem português ou matemática ao ar livre. Pedaços das coberturas de zinco balançam sobre a cabeça das crianças. O diretor da escola, Frederico Francisco, explicou as dificuldades.
“O que nós temos agora, por causa da situação do ciclone, é o problema das salas. A maioria, seis blocos, foram vandalizados pelo ciclone. Não têm chapas de zinco. Nós trabalhamos sem condições. Os alunos estão a ter aulas com os professores em salas que não tem teto. Essa é a maior preocupação e a necessidade maior.”
No centro do complexo, apenas um pavilhão resistiu ao desastre natural. Foi construído com apoio da ONU-Habitat, para resistir a eventos climáticos extremos, e inaugurado um ano antes do ciclone.
Em média, mil salas de aula são danificadas ou destruídas por eventos climáticos todos os anos em Moçambique. Em 2012, o Programa da ONU para os Assentamentos Humanos, ONU-Habitat, começou o Programa Escolas Mais Seguras. A iniciativa oferece uma série de recomendações de como estes edifícios devem ser construídos.
Em 2017, a agência começou uma parceria com o Ministério da Educação e do Desenvolvimento Humano de Moçambique e o Banco Mundial para transformar escolas no centro e norte do país. Desde então já foram construídas 1,1 mil salas de aula.
O diretor Francisco explica que esse tipo de edifícios pode servir como refúgio durante uma emergência.
“Durante o ciclone, a maior parte da comunidade refugiou-se no bloco resiliente. Convivemos com eles, resolvemos todos os problemas e a partir dali foram se alojando.”
Em 2019, os efeitos nas infraestruturas de educação e de saúde foi destaque do Dia Internacional para Redução de Riscos de Desastres, marcado a 13 de outubro.
Em Moçambique, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, estima que mais de 3,9 mil salas de aula tenham sido danificadas ou destruídas durante os ciclones. A situação afetou mais de 376 mil alunos.
Quanto aos hospitais, a Organização Mundial da Saúde, OMS, calcula que irá demorar cinco anos para recuperar toda a infraestrutura danificada. Cerca de 113 unidades de saúde foram parciais ou totalmente danificadas.
Poupança
Investir em infraestrutura mais resiliente em países de baixa e média renda pode gerar um benefício econômico de US$ 4,2 trilhões, segundo um relatório do Banco Mundial. Cada US$ 1 investido pode render US$ 4 em benefícios.
Um dos exemplos da pesquisa é o impacto que as mudanças climáticas terão na infraestrutura de transporte. Em Moçambique, o risco de inundações nestas estruturas equivale a US$ 200 milhões por ano, cerca de 1,5% do Produto Interno Bruto, PIB, do país. Até 2050, esse valor pode duplicar.
Outro relatório, publicado em setembro pelo Centro Global de Adaptação, afirma que um investimento de US$ 1,8 bilhões na próxima década pode gerar até US$ 7,1 bilhões em benefícios.
A coordenadora residente da ONU em Moçambique, Myrta Kaulard diz que existe uma necessidade de investimentos de longa duração porque todo o país está exposto a desastres naturais. Ela afirma que exemplos como os canais e a escola da Beira “certamente precisam ser expandidos, porque provaram ter um bom impacto.”
Segundo ela, a necessidade apenas deve crescer. Kaulard alertou que “os desastres naturais estão a ficar cada vez mais fortes, por isso a forma de reconstruir tem de seguir o último conhecimento, porque existem melhores maneiras de construir e de reduzir o impacto desses desastres.”
Políticas
A especialista conta que resiliência pode ter vários sentidos. Segundo ela, “as pessoas precisam saber o que fazer em tempos normais, para que o seu comportamento não as coloque em risco em tempos difíceis, como morar em zonas sujeitas a inundações.”
Kaulard explicou que os governos têm a responsabilidade de “ajudar as pessoas a mudar para locais onde podem sobreviver sem serem muito afetadas”. Um dos exemplos é o setor da agricultura, um dos mais afetados pela mudança climática. O ciclone Idai destruiu mais de 700 mil hectares de plantações.
Quase de imediato, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, FAO, distribuiu 15 mil kits com ferramentas agrícolas e sementes de feijão e milho. As culturas cresceram rápido, em apenas 90 dias, e foram colhidas em julho e agosto, ajudando a alimentar milhares de pessoas.
Ainda assim, o número de moçambicanos em insegurança alimentar disparou. Em setembro, um milhão de pessoas tinha falta de alimentos, incluindo 160 mil crianças com menos de cinco anos. O número deve aumentar para 200 mil em fevereiro de 2020.