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Exclusiva: Ramos Horta deixa a Guiné-Bissau - Parte 2

José Ramos Horta em entrevista à Rádio ONU. Foto: Rádio ONU

Exclusiva: Ramos Horta deixa a Guiné-Bissau - Parte 2

O enviado especial do secretário-geral da ONU na Guiné-Bissau parte para Timor-Leste.

Na conversa com a Rádio ONU, em Nova Iorque, José Ramos Horta aborda o ano e meio em que serviu a organização no país africano e a ajuda para o retorno ao processo democrático após o golpe de Estado de 2012.

Ramos Horta considera grata a missão de ter criado consensos e revela as expectativas sobre a Cplp  além do papel do Brasil e de Angola para ajudar na recuperação económica dos guineenses.

Nesta segunda parte da entrevista, Ramos Horta confessa os encantos pela terra que o vê partir, pela sua gente e pela manga guineenses. A ideia que o anima é a de rever a sua relíquia automóvel, um mini moke em Díli.

Acompanhe a entrevista com Eleutério Guevane.

Tempo total: 9’15”

RO: Quanto à harmonização das posições das várias entidades envolvidas na questão da estabilização da Guiné-Bissau, como a Cedeao e a Cplp, como conseguiu faze-las lutar juntas pelo bem comum do país com algum consenso?

RH: Na realidade não fui eu que resolvi este problema. A Cplp teve um grande ministro dos Negócios Estrangeiros, que foi o coordenador ministerial. O ministro (Oldemiro) Balói de Moçambique. Ele fez um excelente trabalho para encontrar soluções dentro da Cplp, assim como o secretário-executivo da Cplp (Murade) Murargy. O representante da União Africana em Bissau, Ovídeo Pequeno, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de São Tomé fez um excelente trabalho porque houve tensões entre a Cedeao e a União Africana. A UA impôs sanções, a Cedeao pede o seu levantamento e a UA diz que não mas o embaixador Ovídio Pequeno independentemente das sanções manteve o diálogo com as autoridades civis e militares. Portanto, eu felicito a ele e ao representante da Cedeao em Bissau, o embaixador da Gâmbia. A eles dou o crédito por esse sucesso. A União Europeia também deve-se agradecer e a Portugal, porque apesar das sanções aplicadas que eram inevitáveis na sequência de um golpe, Portugal nunca deixou de apoiar humanitariamente. Os programas de ajuda às comunidades continuaram. O que parou foi o apoio ao orçamento Geral do Estado. O apoio de Portugal, através das comunidades e organizações da sociedade civil, foi muito grande. Ainda eram milhares de euros por ano. O mesmo acontece com a União Europeia, continuaram os programas de ajuda direta às comunidades. Mas o corte do apoio ao Orçamento de Estado teve um custo grande, quando nós fazemos golpes devemos pensar nessas consequências, portanto é natural. Em pleno século 21, não se pode fazer golpe sem que haja consequências. Infelizmente, não há nada de novo na comunidade internacional na coerência, na aplicação de princípios horizontalmente para todos nem sempre é um facto. No golpe militar na Guiné-Bissau não foram os militares que tomaram o poder houve um poder civil de transição apoiado pela Cedeao. Na Tailândia e no Egito foi totalmente militar na sequência do golpe e, não houve sanções. Não critico, o que digo é que às vezes a falta de coerência nas relações internacionais é uma inevitabilidade nas próprias relações internacionais. Ao secretário-geral, fico eternamente reconhecido, assim como ao senhor Jeffrey Feltman, o subsecretário-geral para os Assuntos Políticos. Deram-me carta-branca, eu fiquei felicíssimo com o facto de que tinha total confiança do secretário-geral, ao ponto de o DPI (Departamento dos Assuntos Políticos) dizer que nunca se preocupava com a situação na Guiné-Bissau mesmo quando havia problemas porque sabíamos que tínhamos lá um representante à altura para resolver o problema. E o secretário-geral disse a todos os Srsgs vocês tem toda a autoridade e liberdade para tomar iniciativas vossas se corre bem corre bem mas se corre mal eu secretário-geral assume a responsabilidade. Dá confiança aos seus representantes.

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Ban Ki-moon e José Ramos Horta. Foto: Rádio ONU.
RO: Falou da responsabilidade de vários países lusófonos. É natural de um deles e Timor-Leste que teve muita responsabilidade na questão da Guiné-Bissau. Vê a Cplp a mais interventiva em questões de conflitos nos países-membros?

RH: Temos que ser realistas. A  Cplp não é regional ou sub-regional. Estamos em diferentes continentes. Não queiramos assumir de organizações regionais quando não é. Quando tentamos sonhar em pensar que somos uma organização regional podemos cometer o erro de não conseguir realizar essas ambições. Cada país da Cplp está inserido na sua própria região. Angola e Moçambique estão na Sadc, da África Austral. Cabo Verde e Guiné-Bissau na Cedeao. São Tomé, na região central da África. Timor-Leste no sudeste asiático e, no ano que vem, fará parte provavelmente da Asean. Podemos é ajudar o país no quadro da Cplp ou individualmente o país pede a um de nós para ajudar na solução de alguns problemas. O que devo felicitar é oque vi na inauguração do presidente Jomav, da Guiné-Bissau, a presença forte da Cplp. O ministro da Defesa de Angola, o presidente de Cabo Verde, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e vários líderes da África Ocidental no que revela uma reaproximação entre países da Cplp e da Cedeao. Que eu saiba, uma delegação da Cedeao vai à cimeira da Cplp em Díli. Haverá um memorando entre a Cplp e a Cedeao em relação à Guiné-Bissau.

RO: Alguma memória em relação à Guiné-Bissau que gostaria de ver inserida nos planos da presidência timorense da Cplp nos próximos dois anos?

RH: Infelizmente, nós Cplp, tirando Angola, somos mais ou menos pobres. Não pode haver demasiadas ambições de que a Cplp possa em si ou como grupo ou individualmente estar na primeira linha de ajudar a Guiné-Bissau. Angola tem cash de sobra, o Brasil deveria ter mas o resto, incluindo Timor, tem recursos extremamente limitados. O que podemos fazer é que cada um, usando das suas relações regionais, mobilizar apoios para a Guiné-Bissau. Timor pode fazê-lo junto dos países da região e já está a fazer junto da Malásia, de Singapura, da Indonésia e do Japão. Estamos a tentar trabalhar para que o primeiro-ministro guineense Domingos Simões Pereira faça uma visita à Singapura e Malásia. A Malásia já se declarou disponível para ajudar à Guiné-Bissau. Foi através de mim, enquanto Srsg, que a Austrália deu ajuda humanitária para a Guiné-Bissau porque não estava nos planos do país. A Nova Zelândia contribuiu também para as eleições mesmo distante. Cada um faria nessa área. O Brasil e outros podem influenciar à União Europeia, ao Banco Mundial e aos Estados Unidos. Acertar com esses países o que poderíamos fazer quanto à Guiné-Bissau, que está na agenda prioritária da Cimeira da Cplp em Díli. Dali sairá uma estratégia porque é uma decisão dos chefes de Estado. Ainda não sei qual será o seu conteúdo mas sei que está no topo da agenda. Felizmente, ao realizar-se a reunião de Díli, em finais de junho, será num âmbito de festa com o novo primeiro-ministro e o novo presidente da Guiné-Bissau.

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Eleições na Guiné-Bissau. Foto: Irin.
RO: No âmbito da PBC, a Comissão da ONU para a Manutenção da Paz, esteve com o embaixador Patriota do Brasil (presidente do grupo). O que o Brasil pode fazer mais pela Guiné-Bissau? A vontade do Brasil em contribuir par o país como pode ter maior impacto?

RH: O embaixador Patriota é um diplomata muito respeitado internacionalmente. O facto de ele próprio ter ido ter ido à Guiné-Bissau mostra o seu compromisso com o país. Presidindo a PBC, independentemente do que o governo brasileiro poderá fazer. Eu sei que ele já tem sensibilizado o Banco Mundial e o departamento de Estado para olharem por Guiné-Bissau. Em relação ao Brasil, não sei o que o governo tem em mente mas o que eu posso dizer é que do lado guineense estavam muito positivos e abertos a retomar a operação militar porque o Brasil tinha apresentado o que guineenses consideram o melhor plano para reforma de Forças Armadas que alguém alguma vez tenha apresentado. O ministro da Defesa cessante é que me falou repetitivamente sobre quão positiva era a proposta brasileira para a Guiné-Bissau. Estará o Brasil em condições financeiras para assumir alguma responsabilidade? Eu julgo que sim, O Brasil é a sétima economia do mundo e não é a Guiné-Bissau que seria um grande encargo. Espero que o Brasil não tenha apenas a fama de ser a sétima economia do mundo mas que realize essa reputação, pelo menos ajudando à Guiné-Bissau em força. Olhando para o mapa, o oceano que separa Guiné-Bissau do Brasil é muito pequeno. O Brasil tem verdadeiramente uma vocação africana, não só pela distância mas pelos séculos de história em que os africanos foram enganados por missionários europeus a ire m barcos de escravos porque diziam que “isto é o caminho para o céu.” Os africanos não acreditavam no céu, não tinham esse conceito. Mas alguns fizeram essa viagem, que afinal foi para o inferno, para a escravatura. Daí que hoje no Brasil há milhões de negros e mulatos. Há vocação história, obrigação moral do Brasil hoje olhar pela África e pelos seus irmãos africanos. Se não pode fazer muito por toda a África, que faça pelo menos pela Guiné-Bissau.

RO: Depois da Guiné-Bissau, quem vai ser o presidente Ramos Horta?

RH: Se falar com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e se ele quiser posso ir para o Iraque ou para a Síria (risos). Estou a brincar, vou agora para Timor descansar um bocado mas também ajudar a acolher a cimeira da Cplp. Eu estarei ali com o meu carro, na medida em que Timor tem dificuldades de transporte. E estarei no aeroporto com o meu mini-moke, um carrito pequeno dos anos 60 para receber alguns dos chefes de Estado.

RO: Da Guiné-Bissau, já falou dos rappers das mulheres dos mercados e bebeu muito da cultura do país, sua música e outros. Algo para partilhar sobre o país.

RH: Gostei mais das mangas da Guiné-Bissau. Em Bissau chamam mangos. Mangas é “muitos” e mango a fruta. Nunca vi manga tão grande e saborosa como da Guiné-Bissau, é impressionante. Comi manga em todo o mundo os países tropicais e Guiné-Bissau tem o melhor. O seu caju, é muito melhor que o da Índia de Moçambique …o camarão, as ostras. Mas, sobretudo, além de toda essa riqueza muito subaproveitada há esse povo magnífico. A Guiné-Bissau, um país multiétnico, multicultural e multilinguístico não há ódio nem violência racial. Não há violência como nos outros países onde há muitos grupos étnicos e religiosos. Apesar das manipulações, apesar do desencanto com as elites político-militares, o povo guineense portou-se sempre com grande dignidade e altivez digna. É impressionante, o que mais me marcou a mim e a timorenses que foram à Guiné-Bissau durante o processo eleitoral saíram encantados pelo comportamento daquele povo.

RO: Muito obrigado por esta entrevista à Rádio ONU, aqui em Nova Iorque. Um recado para o seu sucessor?

RH: Não sei quem é o meu sucessor, ainda não foi anunciado pelo secretário-geral, muito obrigado!