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Exclusiva: Carlos Lopes

Exclusiva: Carlos Lopes

Doutor em Economia, especialista em desenvolvimento e em assuntos africanos, Carlos Lopes é o atual chefe da Comissão Econômica das Nações Unidas para África. De Adis Abeba, sede da Uneca, ele mantém um olhar atento e analítico sobre as oportunidades e os desafios do continente.

Guiné-Bissau

Nascido na Guiné-Bissau, Carlos Lopes tem uma extensa carreira na ONU, onde já foi conselheiro-sênior de África para o ex-secretário-geral da organização, Kofi Annan. Desde o início do mandato de Ban Ki-moon, Lopes chefiou a estratégia do Instituto de Treinamento e Pesquisa das Nações Unidas, com sede em Turim, na Itália, até chegar à Comissão Econômica para África.

Na sexta, 11 de abril, ele esteve na sede da ONU para lançar o Relatório Econômico sobre África 2014. Segundo ele, o continente tem uma posição única de negociação com os parceiros e investidores por estar numa posição privilegiada de geração de commodities e recursos já escassos em outras partes do mundo.

Mesmo assim, para Lopes, a África ainda precisa transformar esta riqueza em valor agregado para a população de 1 bilhão de pessoas que habitam o continente.

Leia a entrevista na íntegra concedida à Mônica Villela Grayley.

Modelo Próprio

Rádio ONU: Como é que o sr. vê processo de industrialização da África ocorrendo na prática e para benefício dos africanos?

Carlos Lopes: Nós estamos conscientes de que a industrialização na África é premente, é necessária, tem que responder aos imperativos do crescimento demográfico, à grande urbanização e à juventude da população, que precisa de empregos jovens, que é o mesmo que dizer empregos modernos. Mas estamos conscientes que não podemos imitar o modelo de substituição de importações da América Latina nem o modelo de exportação massiva da Ásia do sudeste porque estamos numa etapa diferente. Esses nichos já foram ocupados. A África chega à industrialização um bocado retardada em termos de calendário. Temos que fazer algo completamente diferente.

RO: E o que seria (este modelo)?

CL: Temos a vantagem de termos um crescimento econômico relativamente importante desde o ano 2000. Este ano, as previsões são de 6% para o conjunto do continente. Isto é uma boa base. Mas infelizmente, este crescimento não está sendo traduzido para criação de emprego moderno. Isto por que? Porque falta a industrialização adaptada à realidade africana. É uma industrialização que tem que ter quatro caraterísticas principais. A primeira é de que é uma industrialização que toma em consideração o potencial energético do continente, que é o mais importante do mundo. A segunda é que nós façamos uma ponte para as tecnologias mais avançadas, limpas, verdes porque não estamos dependente de uma plataforma tecnológica específica como outros continentes estão. O terceiro é que tem que ser uma industrialização voltada para o consumo africano. Um conjunto de áreas de consumo em que os africanos precisam de uma produção propriamente africana, mas também temos a consciência de que o nosso ponto de entrada principal é tirar proveito dos recursos naturais africanos. Então, a industrialização da África tem que ser a partir da sua riqueza em recursos naturais. E finalmente, precisamos fazer uma industrialização que comece com a revolução agrícola. Temos as taxas de produtividade agrícola mais baixas do planeta. Elas não evoluíram nos últimos 20 anos. E qualquer ganho na área agrícola tira muita gente da pobreza porque 60% da população vive nas áreas rurais. E nós estamos conscientes de que há uma conexão entre uma agricultura mais produtiva e a industrialização porque ela pode entrar na África através do agrobusiness, pode fazer com que o processamento de produtos de consumo em grande escala, comece justamente com a industrialização e transformação agrícola.

Petróleo e Gás Natural

RO: E como é que os países de língua portuguesa saem-se nexte contexto?

CL: Nós, se olharmos, portanto, aquilo que era a situação de Angola antes da independência, tinha uma participação relativamente importante no setor das manufaturas. E desde esta altura até agora houve uma regressão, não houve uma progressão em termos de produção industrial para o PIB. É uma economia muito dependente do petróleo e tem uma característica quase igual que é de tirar um grande proveito da renda que vem dessas exportações, mas sem transformações, sem valor agregado. Moçambique, que agora tem grande descobertas de gás está a ir um pouco pelo mesmo caminho. Se não introduzir na negociação de contratos uma série de cláusulas que permitam criar o valor agregado que estamos falando vai ter também um futuro muito parecido. Finalmente, temos uma economia de serviços em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe, portanto mesmo que sejam incipientes por causa da dimensão do país são os serviços que são o principal contribuidor para a economia dos dois países. E no caso da Guiné-Bissau, nós temos ainda uma grande dependência do setor primário, mas com uma grande concentração naquilo que é uma atividade de coleta, que é coleta da castanha de caju. Não é uma atividade com a característica de valor agregado e produtividade. Embora pudesse ser transformado o caju na Guiné-Bissau não é por acaso que o nosso parceiro principal comercial é a Índia, que faz a transformação desta castanha de caju. Todos os países de língua portuguesa na África sofrem do mesmo mal: o de não terem dado uma prioridade às questões industriais. Estamos na altura de reverter esta tendência.

Interesse

RO: E quando o sr. fala valor agregado, o que os líderes internacionais precisam considerar na hora de fazer estes contratos com a China e outros países que têm interesse na África?

CL: Nós, em geral, dizemos que África tem pontos de entrada muito importantes para negociar com seus parceiros. Em primeiro lugar tem um conjunto de produtos em que é controlador a nível de quantidade no planeta. Desde que chamamos de hard commodities ou tipos de produtos naturais que têm um valor de concentração mineral muito elevado desde os soft na área agrícola, ou seja: desde o petróleo ou como por exemplo o cacau. E nestas áreas produtivas em que África tem um controle muito grande da produção mundial deveria haver uma capacidade negocial muito maior dos africanos. Nós estimamos em US$ 50 bilhões de perdas naquilo que se chama de mispricing, ou seja pagar menos do que o valor dos próprios produtos. Em segundo lugar, a África tem neste momento um conjunto de parceiros do Sul que têm um grande apetite para o risco porque se deram conta de que o retorno em investimento na África é o mais elevado do mundo. São cerca de 9,5% quando a média mundial é de 7,2%. Se houver então um bom conhecimento do risco tira-se proveito. É o que faz, por exemplo, a China, e um conjunto de países do Sul. E finalmente, o terceiro ponto que é vantajoso para a África é que o seu crescimento econômico é o resultado de uma situação macroeconômica favorável que mostrou que em duas crises, 2008 e 2009 e 2010 e 2011, a África sai por cima. E não sofre os solavancos e as mesmas dificuldades que os outros sofrem. Tomando estes três elementos em consideração, deveria esperar-se dos africanos uma melhor negociação, e esta melhor negociação é impor o valor agregado, e impor acordos comerciais que sejam favoráveis ao continente.

Brasil

RO: O Brasil tem investido bastante na África. No caso da Cooperação Sul-Sul, ela seria mais justa? No caso específico brasileiro.

CL: Nós temos feitos estudos e publicamos um trabalho sobre a relação Brics-África da qual o Brasil faz parte. Chegamos à conclusão de que, infelizmente, ainda não há uma grande diferença entre a cooperação econômica, não a cooperação para o desenvolvimento, mas a cooperação entre os países em termos de investimentos industriais, agrícolas, minerais etc. Não há uma grande diferença em relação às características dos outros parceiros. Há promessas de que se venha alterar esta relação. E nós estamos a propor formas de chegar a uma mudança de atitude desses países que seguramente, politicamente, têm mais interesse numa cooperação diferente. Mas não sabem muitas vezes onde começar. É um pouco a responsabilidade dos africanos propor pontos de entrada diferentes para essas novas parcerias. Por exemplo, o fato de haver muito investimento na área de infraestrutura dos países emergentes e não haver tanto por parte dos países de cooperação tradicional da África, como pore exemplo Europa, Estados Unidos, Japão, é já positivo em si. Mas o tipo de contratos e da exploração, da infraestrutura etc ainda não é tão arrojado como deveria ser.

RO: O fato de o Brasil falar a mesma língua portuguesa e conhecer mais esses países facilita ou não?

CL: Eu acho que o Brasil tem um capital de simpatia em África enorme que foi conquistado também pelas ações também do governo do presidente Lula. Neste momento, acho que existe uma espécie de expectativa de que isso possa continuar, mas já não está no seu apogeu. Já houve uma altura em que a expectativa em relação ao Brasil era mais elevada. Acho que o Governo Brasileiro deverá ter que investir, outra vez, no reforço desta imagem muito positiva que tinha começado a construir. Eu acho que isso é importante porque, naturalmente, há um encaixe entre as possibilidades de expansão de mercados de algumas empresas brasileiras e os interesses da África. O Brasil tem todas as condições para ajudar a industrialização da África, mas também para ajudar ainda mais uma transformação agrícola na África porque os seus biomas são muito parecidos com os da África. Algumas das grandes revoluções que conseguiu a Embrapa, em termos de melhorias de espécies tanto vegetais como animais, têm o seu embrião em espécies vegetais e animais africanas. Temos ali um capital de complementaridade enorme, para além de, evidentemente, de todos os laços históricos, emotivos e afetivos, que possam existir entre os dois continentes.

Conflitos

RO: E a questão da má governança, da corrupção, dos conflitos que existem também em outros continentes. Mas de que forma isso influi no crescimento, na negociação e nos avanços dessas negociações e nos investimentos?

CL: Nós gostamos dizer que é preciso tomar em conta que a África tem de fato que chegar a uma paz e a uma estabilidade que permitam que o risco e a apreciação de risco sejam menores do que são atualmente. Mas a realidade continua a ser de que a África paga um preço muito maior por algumas das suas dificuldades do que deveria ser o caso se houvesse um melhor conhecimento do que se passa em outras regiões do mundo, ou se as análises fosse do mesmo tipo. Por exemplo, para cada um dos conflitos africanos há um equivalente talvez pior na Ásia, mas isso não impede de que se veja a Ásia como terreno de expansão econômica ou de oportunidaes. Eu posso dar alguns exemplos pegando nos casos mais extremos. O que se passa atualmente por exemplo na República Centro-Africana não é muito diferente do que se passa em Mianmar com a minoria Rohingya. O que passa com conflitos de baixa intensidade que são conflitos de longa duração como Guiné-Bissau e Mali não é muito diferente do que se passa na Malásia, nas Filipinas ou na Indonésia. O número de pessoas mortas nesses conflitos são maiores que na África. Existe pirataria na costa somali ou no Golfo da Guiné, mas existem cinco vezes mais ataques piratas no Estreito de Malaca, onde estão países como Cingapura, Malásia e Indonésia. Se me disserem que há más eleições em África, onde se ganha por 90%, eu lembro que se passa assim no Laos e no Vietnã. E podemos continuar, para cada um dos exemplos africanos, existe um equivalente asiático pior. Por exemplo, há 100 milhões de africanos. E só na Índia por causa do Conflito dos Naxalits e da Caxemira há 200 milhões. Mas ninguém diz que a Índia não é uma potência emergente. E o número de pessoas que são mortas em todos os conflitos do Sudão é menos do que o número de homicídios no estado do Rio de Janeiro. Nós temos que ver as coisas de uma certa perspectiva. E os africanos têm um problema de imagem, um problema de branding, que tem a ver com o fato de que os seus conflitos não serem completamente geridos pelos africanos e terem muita intervenção internacional.

RO: O sr. é um acadêmico guineense respeitado e estudado. Qual é a sua expectativa para as eleições na Guiné-Bissau deste domingo? Realmente pode ser o fim deste ciclo histórico de golpes de Estado?

CL: Infelizmente, não. As eleições são um elemento importante e desejo, evidentemente, que elas passem muito bem, mas os problemas da Guiné-Bissau estão fundamentalmente ligados ao fato de não termos profissionalizado as Forças Armadas e elas estarem sempre por cima, como uma nuvem, que pode pôr em causa os processos políticos, mas também que tem transformado o país numa espécie de refém a nível social. Muito do progresso que os outros países vizinhos conseguiram nos últimos anos, e podemos dar o exemplo de um país como a Gâmbia que tinha uma economia que era a metade da Guiné-Bissau e hoje é duas vezes maior que a da Guiné-Bissau, tem a ver com o fato de nós não termos resolvido esse problema dos militares. E portanto, acho que os fatos falam por si mesmos. Temos uma dificuldade muito grande de poder consolidar a democracia quando se sabe que esta democracia pode ser posta em causa todo o tempo pela intervenção militar.

FIM