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Entrevista: Mia Couto

Entrevista: Mia Couto

Nesta segunda-feira, o escritor moçambicano recebe, em Lisboa, o Prêmio Camões 2013.

Este 10 de junho é o dia do poeta Luís de Camões, das Comunidades Portuguesas e o Dia de Portugal.
Nesta entrevista à Rádio ONU, Mia Couto afirma que nunca teve expectativas, já que “um escritor não escreve para ganhar prêmios.”
Ele trabalha no momento em seu 31º livro e diz que é uma “grande felicidade” ter este reconhecimento.
Nesta conversa com Mônica Villela Grayley e Eleutério Guevane, ele diz “que os anônimos também tem de estar recebendo o prêmio Camões”.
Acompanhe.
Tempo: 10’24’’
Rádio ONU:  O que significa ganhar este prêmio neste momento da sua carreira?

Mia Couto: Eu acho que alguns amigos meus que são muitos generosos e muito otimistas asseguram que estavam à espera que até já tivesse sido antes. Eu não vejo a coisa assim, não tenho nenhuma ilusão porque há tanta gente boa no Brasil, em Portugal, em Angola, nos países africanos todos que merecem tanto ou mais do que eu. Eu nunca criei uma expectativa com relação a isso. Um escritor não escreve por causa de prêmios, não fica mais ou menos escritor por ganhar. Há muito bom escritor que na sua vida não ganhou nenhum prêmio, desde logo o próprio Camões que teve uma vida infeliz, desgraçada, morreu pobre, pensando que sua obra era desvalorizada. Não muda nada. Eu fico muito feliz. Isso tenho que confessar, é uma grande felicidade. Mas não altera em relação às grandes coisas, à razão porque eu escrevo porque que sou feliz, ao empenho que tenho em conviver com meus amigos, com gente que eu gosto. Não muda nada.

RO: Mas você acabou de estabelecer um paralelo com Camões, que teve como escritor uma vida um pouco dura e bastante triste. Eu queria que você falasse também da sua vida como escritor. Como é o seu ofício. Se esses momentos também de dificuldade com relação ao que você está escrevendo e como será recebido passam pela sua cabeça?

MC: Bom, obviamente, cada escritor tem um universo próprio, que não pode ser comparado com outro, né? E longe de mim comparar com o Camões que é uma figura lendária, uma figura que marca, digamos assim, quase a fundação de toda a literatura em língua portuguesa na modernidade. Mas eu sinto que há dramas que todos escritores enfrentam, né? Por exemplo, este drama de começar sempre, pela primeira vez. É uma certa insegurança. Nenhum escritor realmente tem uma carreira, ou fica mais seguro só porque tem prêmios. Eu vou escrever, talvez, o 31º livro agora, e é como se escrevesse o primeiro livro. Eu tenho os mesmos medos e enfrento os mesmos fantasmas que enfrentei quando escrevi o primeiro livro.

RO: E que fantasmas são esses?

MC: Obviamente se a gente publica, nós gostamos que esse livro chegue às pessoas bem, que as pessoas gostem do livro, que se comovam, que chorem, que riam. E o pior nem sequer é quando criticam o livro,o pior é quando o livro cai na total indiferença, é como se não acontecesse nada. É como se a gente tivesse falando para alguém que amamos muito, mesmo que esse alguém seja só uma presença fantasmagórica, que é o outro, o leitor, uma entidade tão vaga. Mas mesmo assim, amamos esta gente. Gostaríamos que tivéssemos um sinal recíproco que eles também gostem de nós. Então, o grande medo é esse.

RO: Qual é a importância de Camões e a influência dele na sua vida como escritor, mas também como lusófono que você é?

MC: Bom, eu para dizer a verdade, por muito que queira ser simpático, Camões existiu há cinco séculos, não é?  E as escrita dele é poderosíssima, mas não marca sequer como influência. Há ali, um estilo, inclusivamente um português datado... O que me parece é que ele foi muito maltratado na escola. Eu conheci Camões, como toda gente da minha geração, através da pior maneira possível. Atavés da escola, onde o ensino da poesia é como se fosse um apoio ao ensino da língua, da regra gramatical. Quando na poesia, de fato, ela deve ser exatamente o oposto. A poesia deve ser usada para mostrar como é que se foge da regra, como é que aquilo é uma liberdade, completamente livre, criando sua própria lógica. Acho que o Camões ter resistido a essa prova de, que era quase uma espécie de armadilha, para deixarmos de gostar de poesia, é preciso que ele seja muito bom.

RO: Mia, alguma máxima de Camões que lhe vem neste momento?

MC: Acho que os versos de amor dele, não é tanto “Os Lusíadas” de que o “o amor é um fogo que arde sem se ver.” E o outro que diz que o “amor faz com que o amado se transforme na coisa amada”, acho que é aí, principalmente, que eu gosto dele. 

RO: Mia, exploras nas tuas obras, nos teus livros, a mística africana. Os teus personagens são do folclore de Moçambique, e consegues levar esta parte moçambicana única, de culturas até esquecidas, para o mundo. Você tem alguma ideia de explorar outras culturas dentro do mundo lusófono?

MC: Eu acho que aquilo que chamamos de folclore, que eu acho que é num sentido positivo, não é uma coisa exótica, mas uma coisa que é a criação diária da gente anônima de Moçambique. Se eu souber que este prêmio pode ser partilhado por esta gente que merece porque são essas vozes que me inspiram, esta gente com sua mensagem, com sua sensibilidade e lógica diferentes até das zonas urbanas. Onde eu me apoio como fonte de inspiração são as zonas rurais de Moçambique. Acho que eu gostaria muito, e esta mensagem que eu levo quando eu for agora a Lisboa receber o prêmio é a mensagem que esta gente anônima tem de também receber o prêmio.

RO: Este “português à Mia Couto” que vai saindo nas suas obras, o que espera ao inventar estas palavras e ao disponibilizá-las ao mundo?

MC: Esse é o fruto de um poeta.  O que eu quero fazer não é uma coisa simplesmente bonitinha ou como se fosse um efeito, ou com uma certa graça. Eu pretendo mostrar que, para dizer as coisas que eu quero dizer, sobre a realidade moçambicana, é preciso remoldar o português. O português com a norma de Portugal, o português fechado, funcional, este que a gente usa no cotidiano, não chega. É como se rasgasse uma janela, numa coisa que se transformava numa parede, que é esta linguagem que está um pouco cristalizada no dia-a-dia portanto não é o propósito....As pessoas dizem: “Ah, isso é muito bonito.” O propósito não é embelezar, o propósito é mostrar que há uma outra luz por trás da parede, né?

RO: E com a realidade do Acordo Ortográfico, portanto, com a implementação sendo adiada. Será esta uma boa decisão, Mia?

MC: Ah, eu para dizer a verdade nunca fiz uma grande guerra com o Acordo. Eu passei ao lado quase assim. Acho que foi pena que quando se discutiu a questão do Acordo, não se discutiu questões mais fundas, que para mim eram mais sérias. Que são, por exemplo, este distanciamente entre o Brasil, Portugal e África. Estas nações, do ponto de vista cultural conhecem-se muito pouco, os materiais não circulam a todos. Por que não discutimos isto que é mais grave do que propriamente escrever-se... e ainda por cima este Acordo mexeu em coisas pequeninhas, quer dizer, o que mudou é realmente muito pouco.

RO: Pois é, mas o que os especialistas dizem é que essa divisão entre o português da África, de Portugal, do Brasil, isso causa uma divisão. E, que para crescer como língua internacional, global, o português tem que se unir, e se apresentar de uma maneira só, como por exemplo, o francês, o inglês. Ninguém fica discutindo as variantes é uma língua, e todo mundo tem a maneira diferente de falar. Por que que com o português tem tanta divisão, na sua opinião?

MC: Eu acho que a gente gosta de complicar o assunto porque os ingleses não têm acordo ortográfico nenhum. E se você for caminhar pelo Google ou escrever um documento que tem quer ser corrigido, automaticamente, no computador, há palavras que têm uma grafia europeia e americana. E isso não complica nada. Eu não sei porque que complica. Nunca me complicou, eu ler um livro do Brasil, coma a grafia brasileira, pelo contrário. Isso me trazia um sabor próprio. Meus livros são publicados no Brasil há mais de 15 anos. Nunca um brasileiro me disse que deixou de compreender um texto meu porque em vez de “fato”, havia “facto”.

RO: Mia, antes de você ir embora. Vamos falar do seu novo livro e do heroi Gungunhana?

MC: Pois é, exatamente. Este é um heroi mistificado na História moçambicana, mais ou menos no centro, no fim do século 19. Não se trata de um romance histórico, mas um romance que entra em diálogo com a História. E aqui, o que é curioso, é que há duas versões da mesma história que são muitos romantizadas, então eu vou tentar ver se conto uma terceira versão deste personagem. Ele foi um grande imperador aqui no sul de Moçambique. Eu quero, sobretudo, uma outra voz que conte a história de Gungunhana, contando a história de um acompanhante menor, um cozinheiro, um tradutor do Gungunhana.