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Zico fala de suas conquistas e revela frustrações de sua carreira

O ex-jogador de futebol Zico é o convidado do podcast UN News.
Mário Alexander Cabral
O ex-jogador de futebol Zico é o convidado do podcast UN News.

Zico fala de suas conquistas e revela frustrações de sua carreira

Cultura e educação

No segundo episódio do Podcast ONU News, Zico, lenda do futebol brasileiro, fala sobre o poder do futebol na promoção da paz global e na formação de cidadãos. Com histórias de sua carreira e iniciativas sociais, Zico destaca como o esporte pode unir povos e impulsionar agendas sociais. 

Na conversa, Zico também revelou sua maior frustração profissional: não ter participado em uma Olimpíada. Ele foi eleito o melhor do mundo em 1983, disputou três Copas do Mundo e foi homenageado em diversos partes do mundo. Lembrando de sua trajetória aclamada, ele lamentou quando foi cortado da equipe olímpica. Confira a entrevista na íntegra para descobrir como o jogador leva o futebol para além das quatro linhas.

ONU News: Neste Podcast ONU News recebemos Zico, uma lenda viva do futebol brasileiro. Ele brilhou primeiro no seu Flamengo antes da projeção para o mundo em carreira com vários títulos, incluindo três copas Américas e Mundiais.

O astro brasileiro também foi ministro do Esporte e agora assessora futebolistas no Japão. Zico, sabemos das homenagens que você vem recebendo pelo mundo. Essa é a razão de presença aqui nos Estados Unidos?

Zico: Eu estava lá no Japão, no Kashima Antlers, que eu sou conselheiro, vou até lá duas vezes por ano e recebi o convite da Mantena Global, que faz um trabalho com a comunidade brasileira. Eles queriam me homenagear pela minha história no futebol e eu saí de lá num voo, por coincidência que o jogo nossa era sábado e terminava às 22h00. Eu fui, voltei para dormir, mas dormi só 04h00, porque a gente tinha que pegar o avião de Kashima para Tóquio, até Haneda, 01h30 de carro. Mas deu tudo certo. E lá, como é para frente, eu saio de lá 11h00, chego aqui 11h00 e aí é o mesmo. Aí o evento era tarde, então me fizeram uma homenagem muito bonita e um belo troféu de design e fizeram um grande almoço, chamaram muita gente de comunidades, muitos torcedores do Flamengo também, que vieram do Canadá, de outros países. E no dia seguinte, fui homenageado na prefeitura de New Jersey, Newark. E foi também muito legal. Ganhei o título de cidadão de Newark. Fiz um talk show lá com o pessoal, todo mundo querendo saber tudo da minha carreira.

Foram dois dias muito bacanas, muito especiais. E feliz, porque sempre procurei fazer trabalhos voluntários de ajuda a entidades do Rio de Janeiro. Esse ano completa 20 anos do Jogo das Estrelas, que é um jogo que a gente faz em dezembro no Maracanã, que vão todas as entidades do Rio de Janeiro, algumas que são indicadas por jogadores que participam. Então é muito legal.

E pelo que eu vi aqui, o trabalho que a Mantena faz é um trabalho muito legal para a comunidade brasileira. E dentro disso, dois amigos que nós temos, o Mário, que hoje trabalha na academia da CBF e foi jogador de futebol também. E o outro Cesinha, que é de lá de New Jersey, tem uma escola de futebol lá e eles criaram duas clínicas de futebol. Eu tenho uma escola de futebol, Zico 10, e com isso a gente está abrindo, tentando abrir mercado. Já fiz várias clínicas aqui em Nova Iorque, em Orlando.

Zico se dedica a educar os jovens por meio de suas escolas de futebol, a "Zico 10".
Zico 10/Divulgação
Zico se dedica a educar os jovens por meio de suas escolas de futebol, a "Zico 10".

ONU News: Zico 10 é uma marca que ficou. Estávamos aqui a caminhar e muitos não brasileiros estavam falando "Zico, number 10". Esta é a proposta que pretende trazer somente para estes jovens aqui? Aqui nas Nações Unidas, tendo visto, enfim, um movimento em pouco tempo na luta pela paz, acha que um dia poderia contribuir quando temos muitos conflitos no mundo?

Zico: Exatamente. Eu acho que às vezes você quer contribuir, mas tem que descobrir a melhor maneira. O futebol, principalmente aqueles que estão em atividade, tem muito mais facilidade, muito mais mídia, muito mais espaço. E o futebol, por ser um esporte que agrega e que tem maior visibilidade no mundo, deveria dar um passo a mais. Não só se estar no meio do futebol, ele tinha que ter um espaço amplo para ajudar os países, ajudar nos conflitos... nós tivemos, no nosso país, o maior jogador da história, que é o Pelé, grande referência para todos nós. Na África, ele parou uma guerra. Ele foi lá jogar com o Santos, parou a guerra para verem ele jogar. Isso é o que representa o futebol. Eu acho que os jogadores hoje fazem muitos trabalhos sociais, mas de maneira individual e não coletivamente. As confederações, até a própria FIFA, que faz um trabalho, porque eu acho que acabam fazendo só quando tem algum interesse por trás. E eu acho que solidariedade ela precisa ser feita sem você visar nada lá na frente e visar sempre o objetivo de melhoria, de tranquilidade, de realmente ajudar aquelas pessoas que estão no meio do conflito.

ONU News: Você foi ministro do Esporte no Brasil. Quais que foram as oportunidades ou as boas práticas que o país tem no esporte, especialmente no futebol, por ser um esporte tão democrático?

Zico: O mais importante que que a gente procurou deixar foi a mudança da lei. A lei que rege o esporte. Porque muita gente pode falar "o ministro do Esporte é do futebol". Não é do futebol. Por incrível que pareça, eu quando jogava, tive um conflito com a CBF, com o presidente da CBF, foi a única confederação que não me apoiou porque também não precisava. As outras precisam das verbas do governo. Eu sofri um pouquinho de preconceito no início por ser do futebol. A comunidade esportiva estava sempre acostumada com outras modalidades. Quando chegou do futebol, alguns viraram. Mas eu fui lá para ajudar o esporte.

Se você me perguntar se tive algum ganho com isso... Nenhum, né? Inclusive, perdi profissionalmente muita coisa. Meus contratos tiveram que ser suspensos, porque trabalhando com o governo, você não pode ter outra renda a parte. E infelizmente, pela vida que eu que eu levava, eu não ia conseguir sobreviver com aquilo. Mas o meu trabalho foi voltado para ajudar o desenvolvimento do esporte e dentro daquilo que estava acontecendo, a primeira coisa que nós chegamos à conclusão é que a lei do esporte tinha mais de 40, 50 anos, estava totalmente ultrapassada. Nós modernizamos, ficamos seis meses nisso, fomos a Portugal, viemos aqui nos Estados Unidos, fomos a alguns outros países, como o Japão, que tinham modernizado as leis, e fizemos uma adaptação para o Brasil. Essa questão, que hoje todo mundo está falando no Brasil, Sociedade Anônima, foi colocado no projeto. A questão das votações, da participação da comunidade de cada esporte nas votações dentro da Federação. É inadmissível que você tenha numa entidade esportiva uma pessoa por 20 anos, 30 anos. Será que só tem ele que entende daquela modalidade? A gente tentou modernizar isso, fazer com que as pessoas de cada modalidade pudessem votar, participar das eleições. Algumas coisas foram aprovadas, outras não.

Agora, o trabalho foi deixado, né? Foram criadas ligas, não tinha ligas. E aqueles que criaram ligas, por exemplo, liga de basquete, liga de vôlei, liga do automobilismo. foram um sucesso tremendo no Brasil. Hoje, só o futebol que não cria liga. Futebol continua lá. A federação, a confederação, tentando fazer e não muda nada. Cada um puxa para o seu lado. Mas todo lugar do mundo tem uma liga. A CBF não deveria se intrometer num campeonato. Os clubes é que tem que resolver, mas os clubes, a CBF fica com eles nas mãos para fazer o que eles querem, né? A própria eleição da CBF foi criada de uma forma que não pode entrar ninguém. Ninguém consegue entrar, ser eleito porque eles fizeram uma situação de votos que as federações têm sempre maioria do que os clubes. E quem faz o futebol são os clubes. Quem dá os jogadores para a seleção são os clubes. Então, os clubes que deveriam ter mais autoridade do que qualquer outra coisa e não a federação de cada Estado.

Zico, ídolo da Copa do Mundo do Brasil, carrega a chama olímpica ao lado de ex-craques da seleção japonesa
Divulgação
Zico, ídolo da Copa do Mundo do Brasil, carrega a chama olímpica ao lado de ex-craques da seleção japonesa

ONU News: Ainda sobre jovens e o futebol, vamos falar da gestão do sucesso pessoal nesta indústria. Como craques podem fazer a diferença investindo ainda mais preservando suas carreiras?

Zico: Eu acho que isso tudo vem dos valores morais, éticos e educacionais que se você recebe dentro de casa, dentro da sua casa, independentemente de você ter sucesso ou não ter sucesso, é a tua escolaridade, a tua educação. Isso tudo é que é o mais importante. Eu tive essa felicidade de ter meus pais que tinham um controle muito grande. Éramos seis filhos, agora dois faleceram e somos quatro ainda. E para meu pai, todo mundo tinha que estudar. Não queria que a gente jogasse futebol, tinha que fazer o estudo. E o orgulho maior dele é que os seis filhos se formaram antes dele morrer. Todos eles têm o canudinho do diploma, da formação. E esse foi o orgulho muito grande para ele. Até o meu irmão mais velho, que era jogador de futebol também, ficou dois meses treinando no Fluminense do Rio e só depois ele convenceu o meu pai que ele ia continuar na escola, para se formar, que ele foi falar que ele estava lá no Fluminense. Aí o meu pai aceitou. Eu fui o último, eu era o caçula, então para mim foi mais fácil. A porteira já está aberta.

E eu acho isso, normalmente é um percentual grande, vem de famílias humildes, famílias de comunidades, e às vezes não tem um preparo adequado. E o garoto de repente está ali, começa a ter um resultado. Aí ele tem um salário baixíssimo. De repente ele em um mês muda tudo, muda a vida dele. Se ele não tiver pessoas, principalmente familiares, que estejam em volta dele para cuidar, para ajudar a mostrar que aquilo tudo um dia vai passar, eles entram numa situação de primeiro se divertir, primeiro é o luxo. E isso não dura para sempre.

ONU News: Na escola, na Zico 10, vocês também trabalham isso?

Zico: Isso, o lado do cidadão. Que a gente tem que saber que você pode ir para o futebol, mas se você tiver bem formado, se não der certo no futebol, o mundo não vai acabar para você. Você está bem preparado com as coisas que você aprende no futebol, as regras que tem no futebol, de ser um esporte democrático, um esporte que todos podem participar, seja branco, negro, amarelo, seja magro, alto, gordo, seja pobre ou rico. Não importa, todo mundo vai participar. Então todo mundo tem que obedecer às regras ali, as regras do jogo, respeitar os professores, os técnicos, os juízes. Isso tudo te dá uma condição boa de se você não der certo no futebol, vai ter todos esses itens para qualquer trabalho. Viver em grupo, viver em união. Quer dizer, o futebol você não pode jogar para si. É um esporte coletivo. E esse esporte coletivo te faz entender que você é uma peça, uma engrenagem daquele grupo.

Se você, lógico, tem mais qualidade, você vai ter um destaque maior, mas você depende dos outros. E isso você tem que saber que todos têm que dar o seu melhor para o time, em benefício do time. Quando o garoto aprende isso desde cedo, ele leva para o resto da vida. Eu vejo o futebol hoje, por exemplo, muito individualista. Quando eu vou conversar com as crianças, eles não perguntam: "Como é que foi seu título? Você não ganhou muitos títulos?" e sim: "Você foi o melhor quantas vezes?" No esporte coletivo não tem o melhor. Vocês têm um esporte individual, que é o tênis, que é a Fórmula 1... E mesmo assim tem por trás deles, o técnico, o carro, o construtor e tal. Mas ele tem que decidir tudo ali, sozinho, na direção e o talento dele sozinho, que vai ser ajudado pela máquina. Agora no futebol, não! Você é bom na tua posição. Tem outro que na posição aqui, tem outro lá atrás. Você não pode pensar só em você. Até mesmo nas palestras que eu faço pelo país, explico isso, que no esporte coletivo, é o "nós" que tem que prevalecer, não o "eu". Minha vida foi toda pautada nesse sentido.

Bandeiras da ONU e das Olímpiadas.
Foto: ONU/Evan Schneider
Bandeiras da ONU e das Olímpiadas.

ONU News: Quais são seus planos para a Olímpiada em Paris?

Zico:Eu não tive a felicidade de disputar uma Olimpíada. Fui cortado para a seleção na convocação. Você vê como é que são as coisas. Eu fui para o pré-olímpico, fiz o gol da classificação. Ganhamos da Argentina de 1 a 0, eu fiz gol. E fomos classificados para ir para Olimpíada de Munique - aquela Olimpíada que teve o atentado. Eu não fui, fui cortado. Estou falando da maior decepção que eu tive na minha vida, na minha carreira. E foi a única vez que eu que eu quis parar de jogar futebol. Meus irmãos que não deixaram, fizeram bem.

Quando chegou a Olimpíada no Brasil, eu fui um brasileiro que não tive a felicidade de ser convidado para carregar a tocha, enquanto alguns que hoje estão de tornozeleira eletrônica carregaram. Então foi outra decepção em termos de Olimpíada na minha cidade, no meu país, ver tanta gente ter esse privilégio e eu não. Não vou ser humilde pelo que eu fiz, pelo meu estado, pela minha cidade no mundo inteiro. Seja na Itália que eu joguei, seja no Japão... Eu tinha que pelo menos receber o convite para isso e não aconteceu. Então foi outra frustração.

O Japão, quando fez a Olimpíada, eu não tinha nada a ver com o esporte olímpico japonês. Só que Kashima era uma cidade que até os jogos de futebol, o estádio do Kashima. O Comitê Olímpico japonês me chamou e me fez convite para carregar a tocha lá. Então isso foi um tapa na cara do nosso país. Agora me convidaram para ser um dos padrinhos da delegação brasileira. Então, dia 23, estou viajando para Paris para ficar lá. Alivia um pouquinho. São outras pessoas também, né? Mas isso foi uma decepção muito grande que eu tive de não poder ter tido a oportunidade de disputar a Olimpíada.

ONU: Zico, qual o legado que você deseja deixar para o mundo?

ONU News: A minha determinação é o amor ao futebol. Eu sempre fui um cara muito determinado. Sempre procurei dentro daquilo que que eu pensava sobre o futebol... tive o privilégio e a felicidade de ter três irmãos que jogaram futebol. Acompanhar o dia a dia deles, ver o que foi bom, o que não foi. Eu já peguei tudo de mão beijada. Então eu, modéstia a parte, sou uma pessoa muito observadora e uso minha inteligência para isso. Eu não deixei em nenhum momento que quando eu comecei a jogar e ter sucesso, me sabe me deixar com alguma coisa a mais. Eu sei que isso tudo um dia podia acabar.

Mas tive também outro privilégio de jogar no clube da maior torcida do país, do Brasil. Joguei dez anos na seleção, então você aparece para o mundo. O Flamengo tem hoje quase 50 milhões de torcedores. Não é fácil. E eu tive uma carreira brilhante lá no Flamengo. Isso tudo, sabe, tem uma repercussão. E eu, sabedor da minha responsabilidade, do que as pessoas iam para me ver, confiava em mim... Eu era um cara, um profissional ao extremo, que eu tinha hora para chegar no clube, mas não tinha hora para sair. Minha esposa entendeu isso perfeitamente. Eu sempre procurei me aperfeiçoar ao máximo, seja nos itens pequenos do futebol que a gente chama dos fundamentos de chute, de cabeceio, de domínio, de bola, de drible... Tudo isso eu fazia à exaustão, para chegar dentro do campo e corresponder àquilo que o torcedor queria. Essa determinação eu acho que é o que fica, que quero que fique para sempre. Talento Deus dá para cada um, mas se você não souber gerenciar esse talento e ajudar também... Ele te presenteia com isso tudo, você tem que corresponder também, né? E eu acho que dentro daquilo que eu recebi, eu correspondi.