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De Gaza à Ucrânia, alto comissário destaca importância da responsabilização para encerrar ciclo de violações de direitos

Volker Turk, alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em entrevista à ONU News.

Há uma onda de apoio aos direitos humanos. Observo isso entre os Estados-membros, no setor privado e, sobretudo, entre os jovens. Através de diferentes sondagens de opinião, sabemos que mudança climática e questões de direitos humanos estão no topo da agenda da juventude.

UN Photo/Mark Garten
Volker Turk, alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em entrevista à ONU News.

De Gaza à Ucrânia, alto comissário destaca importância da responsabilização para encerrar ciclo de violações de direitos

Direitos humanos

Com o conflito em Gaza e o número de mortos, principalmente mulheres e crianças, aumentando a cada hora, garantir a responsabilização é “absolutamente crucial” para evitar que as questões se perpetuem, disse o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Turk, nesta quinta-feira. Em entrevista exclusiva à ONU News, ele destacou que a responsabilização é fundamental e um “elo perdido” na maioria dos conflitos ao redor do mundo, o que perpetua ciclos de violência.

"É absolutamente crucial que a responsabilização faça parte de qualquer acordo futuro, porque sabemos que se a impunidade reinar, se os fatos não forem revelados e a verdade não for dita, teremos queixas sem fim", disse o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Turk, nesta quinta-feira, referindo-se a mais recente escalada do conflito Israel-Palestina.

A entrevista também aborda a questão da Ucrânia, onde civis também sofrem com a invasão da Rússia. Observando que levar os culpados à justiça pode ser um trabalho lento, Volker Turk destacou o poder dos mecanismos de responsabilização, traçando paralelos com marcos históricos como os Julgamentos de Nuremberg ou o acordo pós-guerra após o conflito na antiga Iugoslávia na década de 1990

"Uma vez que você cometeu esse tipo de crimes, nunca pode ter certeza de que, em algum momento, não será pego", destacou. O chefe de direitos humanos da ONU também falou sobre o perigo do aumento do discurso de ódio e retrocesso nos direitos das mulheres. Confira a íntegra com a jornalista Cristina Silveiro.

Volker Turk, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, conversa com a UN News em uma entrevista exclusiva
UN Photo/Mark Garten
Volker Turk, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, conversa com a UN News em uma entrevista exclusiva

ONU News: Alto comissário Turk, obrigado por conceder esta entrevista à ONU News no 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Já são mais de dois meses da recente escalada do conflito entre Israel e Palestina após o ataque do Hamas em 7 de outubro e a resposta de Israel. Testemunhamos semana após semana de horror. Mais de 18 mil palestinos morreram, muitos deles crianças. Você expressou preocupações extremamente graves em torno das múltiplas violações do direito internacional e pediu uma investigação. Você alertou que ninguém está acima da lei. O que pode ser feito para fazer cumprir os direitos humanos internacionais e garantir que a lei humanitária se aplique a todos os Estados-membros?

Volker Turk: em primeiro lugar, é uma tragédia sem precedentes o que está acontecendo na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, mas também em Israel, porque afeta, no final do dia, todas as comunidades. E, claro, o que está acontecendo em Gaza é devastador. Estou indignado também com o fato de que muitos de nossos colegas foram mortos - 134 da Unrwa, um da OMS - que o nosso sistema humanitário não é respeitado, que não somos capazes de fazer o que normalmente faríamos em uma situação de guerra, e que os direitos humanos e a lei internacional são violados diariamente de formas extremamente graves. 

E é absolutamente crucial que a responsabilização seja parte de qualquer acordo futuro, porque sabemos que se a impunidade reinar e se os fatos não forem revelados, e se a verdade não for revelada, teremos reclamações se prolongando indefinidamente. Então, espero que com o trabalho que estamos fazendo do lado dos direitos humanos, mas também com o que o Tribunal Penal Internacional está fazendo, com os diferentes mecanismos, vai nos ajudar a superar algumas das questões de responsabilização que enfrentamos nessa situação.

Um homem leva seus filhos por terras bombardeadas na Faixa de Gaza durante a pausa humanitária temporária
Unrwa/Ashraf Amra
Um homem leva seus filhos por terras bombardeadas na Faixa de Gaza durante a pausa humanitária temporária

ONU News: Quais são os próximos passos que você visualiza e o que você diria àqueles que estão sinalizando possíveis sinais de genocídio?

Volker Turk: Então, vamos continuar documentando, relatando, monitorando a situação. Estou muito preocupado com o risco de crimes atrozes. Estou muito preocupado com a situação na Cisjordânia, em particular, porque o que vemos é que desde o dia 7 de outubro, mais de 271 palestinos foram mortos, incluindo 69 crianças. Estou preocupado com o que isso significa para o futuro. Estou também extremamente chocado com a linguagem desumanizante que vi, tanto do Hamas quanto de líderes militares e políticos israelenses. Alguns deles fizeram comentários que são absolutamente inaceitáveis e isso nos preocupa muito.

ONU News: Sobre o conflito da Ucrânia, você denunciou os abusos rotineiros dos direitos humanos cometidos pelas forças russas com pouco ou nenhum efeito prático. E há vários mecanismos de direitos humanos monitorando violações e publicando relatórios regularmente. Como você mantém o foco em outra guerra horrível, que já dura quase dois anos?

Volker Turk: Então, imediatamente quando eu voltar para Genebra na próxima semana, tenho que abordar o Conselho de Direitos Humanos e fornecer a eles uma atualização sobre a situação dos direitos humanos na Ucrânia. E como você sabe, durante o inverno, a situação é ainda pior porque algumas das comunidades, especialmente perto das linhas de frente, não conseguiram acessar eletricidade. Temos assassinatos em curso. Temos graves violações dos direitos humanos, em particular a tortura. Isso acontece sempre que as forças russas conseguem ocupar território. E sim, só precisamos garantir que, novamente, a responsabilidade vai ser servida. E temos vários mecanismos semelhantes ao que vemos no Oriente Médio, mecanismos de responsabilização que estão sendo usados no momento. E eu só espero que eles realmente sirvam à justiça. Isso está no interesse de todas as vítimas.

Dezenas de civis foram mortos num ataque aéreo na pequena aldeia de Hroza, no leste da Ucrânia, em 5 de Outubro
Ocha/Saviano Abreu
Dezenas de civis foram mortos num ataque aéreo na pequena aldeia de Hroza, no leste da Ucrânia, em 5 de Outubro

ONU News: Então, a chave é sempre a responsabilização.

Volker Turk: A chave é a responsabilidade porque tem sido o elo perdido na maioria das situações de conflito ao redor do mundo. E se você não abordar a responsabilidade, acabará novamente em guerra e conflito.

ONU News: Você diria que há esperança de garantir o devido processo em uma guerra como a da Ucrânia.

Volker Turk: Em primeiro lugar, a pergunta é quando isso pode ser feito. Mas vimos em tantas outras situações, se olharmos apenas para a Bósnia e as guerras na antiga Iugoslávia, mas também em Ruanda e outras situações, você realmente vê pessoas sendo responsabilizadas. Até hoje, temos jurisdições nacionais e jurisdições universais que se aplicam. E você nunca, uma vez que tenha cometido esse tipo de crimes, pode ter certeza de que em algum momento você não pode ser pego. Então, eu acredito nesse mecanismo de responsabilidade. 

Não tínhamos isso há 75 anos atrás. Tivemos isso no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. E esse sistema que foi estabelecido com os julgamentos de Nuremberg nos ajudou muito a construir um sistema de responsabilidade. Eu sei que não é rápido o suficiente. Sei que deveríamos tê-lo em todos os lugares e com a mesma intensidade, mas é o início de algo incrivelmente importante.

ONU News: Você é o alto comissário no ano do 75º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O que você diria àqueles que perderam a fé nos direitos humanos e dizem que eles se aplicam apenas a alguns e não a outros. ou que são lentos?

Volker Turk: Dentro das Nações Unidas, nascemos de eventos catastróficos. Duas guerras mundiais, Holocausto, a ameaça nuclear. Deslocamento em massa. Houve só na Europa. 60 milhões de deslocados. Dessa situação, surgiram a carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E foi feito em meio a um período horrível na história humana. E foi feito precisamente com esse sentimento de “nunca mais”. E é isso que a Declaração Universal dos Direitos Humanos deu origem e vimos ao longo dos últimos 75 anos, não falamos o suficiente sobre as conquistas. Vimos enormes conquistas no campo dos direitos humanos se olharmos isso de uma perspectiva histórica. Claro, também há falhas, mas as falhas não são do próprio sistema de direitos humanos, são falhas de implementação. E isso nos remete ao que os Estados-membros e suas obrigações são, mas também cada vez mais empresas, setor privado e atores não estatais de forma mais geral. E é aí que precisamos também colocar a ênfase.

Eleanor Roosevelt, dos Estados Unidos, segurando um pôster da Declaração dos Direitos Humanos em inglês. (novembro de 1949)
ONU
Eleanor Roosevelt, dos Estados Unidos, segurando um pôster da Declaração dos Direitos Humanos em inglês. (novembro de 1949)

ONU News: Como você pretende que os direitos humanos sejam levados mais a sério? E você pode dar alguns exemplos de como eles funcionam ou exemplos e soluções das melhores práticas no terreno?

Volker Turk: Acabei de voltar de Genebra. Tivemos um evento de alto nível de dois dias para comemorar os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E é um milagre que, com polarização e tensões geopolíticas, conseguimos mais de 155 países a fazer promessas concretas que realmente vão ser transformadoras.

Por exemplo, cinco países se comprometeram a abolir a pena de morte. Temos 54 países que tiveram sugestões muito concretas sobre como melhorar a igualdade de gênero, a proteção das mulheres. Um número de países trabalha com 14 ou mais que vão estabelecer instituições nacionais de direitos humanos. Temos países que vão adotar legislação para proteger pessoas com deficiência. Temos vários países que estão falando sobre fazer mais em questões de responsabilidade e justiça de transição.

Isso me dá esperança no meio de todas as notícias negativas que temos. Vemos progresso. Tivemos nos últimos três anos sete países que descriminalizaram as relações entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Temos dois que infelizmente foram para o sentido contrário, mas temos sete que descriminalizaram. Então, há progresso. Nós simplesmente nunca devemos desistir e devemos perseverar em nosso trabalho.

Defensores dos direitos das mulheres participam em atividades de sensibilização numa escola para meninas em Herat, no Afeganistão
Unama/Fraidoon Poya
Defensores dos direitos das mulheres participam em atividades de sensibilização numa escola para meninas em Herat, no Afeganistão

ONU News: Você mencionou gênero e os direitos das mulheres. E pelo que se observa desde o Talibã até a redução dos direitos reprodutivos em algumas das chamadas nações mais desenvolvidas, como interpreta a atual redução dos direitos das mulheres em todo o mundo?

Volker Turk: Temos assistido a um retrocesso muito preocupante em matéria de gênero, de direitos de gênero e direitos das mulheres em geral. Mas também não esqueçamos de onde viemos. E é importante ter isso em mente.

O que me choca hoje é que coisas que eu teria pensado que não seriam mais um problema, como os direitos sexuais e de saúde reprodutiva, por exemplo, ou mais ou tão-somente questões básicas de igualdade que agora se tornariam uma questão de debate. Eu só espero que seja uma aberração que venha a desaparecer rapidamente, porque e nós precisamos, é por isso que precisamos lutar por isso, porque nunca podemos subestimar nada. Essa é uma das lições aprendidas com os direitos humanos. Eu acho que cada geração deve assumir isso, comprometer-se novamente e encontrar uma maneira de reagir contra os influenciadores que muitas vezes têm atitudes misóginas, sexistas e patriarcais que, francamente, não deveriam ter lugar no século 21.

ONU News: E regimes estatais inteiros também.

Volker Turk: E, em particular, se olharmos para o Afeganistão, onde temos basicamente uma autoridade de facto que persegue sistematicamente as mulheres e meninas por serem quem são. Quero dizer, isso é praticamente inédito no século 21. E realmente precisamos encontrar maneiras e meios de impedir isso. Mas não é só, a questão não é somente aí. Também temos problemas muito sérios no Iémen. Temos a situação em muitos países: Papua Nova Guiné, por exemplo, no Irã e em outros locais onde de fato existe uma discriminação tão sistemática contra as mulheres.

ONU News:  Há uma infinidade de eleições em nível nacional planejadas em todo o mundo para o próximo ano. Estamos assistindo a uma erosão maciça nos princípios da democracia e da tolerância, e à polarização. Entretanto, assistimos também a um aumento de campanhas de desinformação bem orquestradas e à repressão até mesmo de manifestações pacíficas. Pode nos dizer o que seu escritório faz para apoiar eleições livres, justas e transparentes?

Volker Turk: É uma grande preocupação para nós ver que temos mais de 70 eleições a decorrer, com 4 mil milhões de pessoas a elegerem sua nova liderança. E, ao mesmo tempo, plataformas de redes sociais que muitas vezes perpetuam a desinformação maléfica, até mesmo o incitamento à violência e ao ódio. Isso é para nós, e para a ONU em geral, não apenas para o meu escritório, para nós na ONU, é extremamente importante detectar rapidamente sinais de alerta precoce e agir sobre eles e combatê-los. Para depois estarmos em contacto com empresas tecnológicas que gerem plataformas de redes sociais para que realmente façam moderação de conteúdos, por exemplo, e que combatamos através de campanhas sobre o efeito nocivo que o discurso de ódio ou a desinformação têm nos processos eleitorais.

ONU News:  Você mencionou discurso de ódio. Vemos uma polarização crescente, conflitos, aumento do antissemitismo e da islamofobia. O que diz, por exemplo, àqueles que, antes do conflito que vemos com Israel e a Palestina, sentem o ódio crescer dentro deles?

Volker Turk: Digo que o ódio é uma daquelas emoções extremamente negativas e, infelizmente, vende bem. E às vezes há interesses comerciais que impulsionam o ódio e precisamos reduzir isso. Precisamos dar o grito.  Precisamos mostrar esses modelos de negócios. E precisamos de encontrar formas e meios, mais uma vez, para trazer a humanidade de volta ao seu âmago e aos seus alicerces. E desejo que as mensagens de paz, de cura, de transformação do ódio em ações positivas ganhem mais força, tanto na mídia, mas também nas discussões. Esperamos continuar a ter uma discussão sobre a paz, que é bastante marcante, ou sobre os direitos humanos como um veículo transformador para um mundo melhor. E eu gostaria que tivéssemos mais disso.

ONU alerta que o atual fluxo de informações falsas pode ser uma ameaça para os jovens
Unsplash/Dan Edge
ONU alerta que o atual fluxo de informações falsas pode ser uma ameaça para os jovens

ONU News: Mencionamos várias vezes o 75º aniversário da Declaração Universal. Estamos chegando ao final de um ano e duas semanas de múltiplos eventos que marcam este aniversário. Como você se sente ao final do período? O que resultou desses eventos?

Volker Turk: Tal como mencionei antes, temos essas promessas incríveis. Eu sinto, e às vezes é difícil comunicar sobre isso, porque estamos em um momento tão terrível e sombrio em nossa história. Mas há uma onda de apoio aos direitos humanos. E observo isso entre os Estados-membros. Vejo no setor privado e, sobretudo, entre os jovens. Dos jovens, sabemos, através de diferentes sondagens de opinião, que as alterações climáticas e as questões de direitos humanos estão no topo da sua agenda. Tivemos um grupo consultivo de jovens. Tivemos centenas de milhares de jovens também participando de diversos eventos por causa da Declaração Universal de Direitos. E posso afirmar que eles sabem o que significa falar e sentir os direitos humanos. E isso me dá muita esperança. Então, vejo esta força positiva que pode nos ajudar a colocar os direitos humanos de volta ao centro de tudo o que fazemos.

ONU News: Portanto, apesar do estado atual da situação mundial, você se sente esperançoso eu uma saída desta situação.

Volker Turk: Nunca podemos perder a esperança e nunca podemos desistir do nosso trabalho. E acho que no âmbito das tragédias de hoje também podemos ver quais são os elementos que nos trazem e nos tiram disso, desse precipício, e nos deixem ter esperança em um futuro mais pacífico e mais acolhedor do outro.

ONU News: Muito obrigado.

Volker Turk: Obrigado.