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Márcia Braga foi a primeira vencedora do Prêmio de Defensora da Igualdade de Gênero da ONU, em 2019

Boina-azul Márcia Braga diz que a missão de paz a ensinou a ouvir a comunidade

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Márcia Braga foi a primeira vencedora do Prêmio de Defensora da Igualdade de Gênero da ONU, em 2019

Boina-azul Márcia Braga diz que a missão de paz a ensinou a ouvir a comunidade

Paz e segurança

Primeira ganhadora do Prêmio de Defensora da Igualdade de Gênero da ONU fala ao Podcast ONU News sobre mulheres em ambiente de estabilização, da aproximação com civis e dos riscos na manutenção de paz; Márcia Braga chama a atenção para a seriedade da desinformação no terreno, que pode terminar em mortes; ela começa a conversa lembrando um ataque do qual foi vítima na primeira semana de trabalho.

ONU News: Ela estudou informática. Em 2000 decidiu fazer um concurso para marinha, não tinha nenhum familiar nas Forças Armadas. Fez o concurso, passou e hoje ela é conselheira de comunicação do Departamento de Operações de Paz, aqui das Nações Unidas. Estamos falando da capitã-de-fragata, Márcia Braga. Ela está aqui no Podcast ONU News. Eleutério Guevane vai fazer a primeira pergunta.

E, por pouco, esse não seria um obituário, capitã. Esteve na África. Lá iria acontecer um episódio que lhe iria marcar para sempre...

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Márcia Braga: Verdade. Primeiramente, obrigada pela oportunidade e pelo convite. É sempre um prazer poder estar aqui e falar um pouco da minha experiência na ONU e na carreira. Na realidade, eu fui desdobrada em abril de 2018. E exatamente no dia em que eu completava uma semana na missão, dia 1º de maio, Dia do Trabalho, enfim, a gente teve essa ocorrência.

Eu contava com um amigo, um colega, um tenente-coronel do Exército Brasileiro e tinha pedido apoio para procurar uma residência para morar. O que acontece? Em Bangui (capital da República Centro-Africana), a gente tem a base da ONU. Para o caso dos staff officers que era o meu caso, eu era gender protection adviser, nós não tínhamos acomodações dentro da base. A gente precisava procurar um local, dos já autorizados pela ONU, de maneira a alugar uma casa ou um apartamento para poder passar a missão. Bom e aí nós fomos esse dia, como era feriado, tiramos para procurar. Andar pela cidade e ver os pontos, aquele que mais me agradava. Eu tinha intenção de ter meu próprio apartamento de maneira a focar mais no trabalho. Enfim...

ON: O que todo o mundo faz quando chega no trabalho novo. Procura um lugar para morar. É uma coisa natural na República Centro-Africana...

MB: Isso. E aí nós saímos para procurar. Então começamos a andar. Vimos os bairros que ele me apresentou, as localidades onde já tinha pessoal da ONU morando. Quando terminamos, nós paramos para tomar um café, bem próximo já à base da ONU. Depois cada um ia...Ele iria seguir ao trabalho e eu voltar para as minhas atividades.   Enfim, nós paramos. E ele recebe uma informação no rádio, um broadcast: a área estava com restrição de segurança. E que a gente tinha que voltar para base e não ficar circulando com carro da ONU. Entendendo que nessas áreas a gente circula apenas com carro da ONU.

ON: O carro é blindado?

 

MB: Não, é um carro normal. Enfim, entramos no carro como foi o nosso planejamento: voltar para o Quartel-General. Quando a gente saiu, ele falou: Márcia cuidado.

Eu abaixei minha cabeça. E aí começou, a primeira pedra veio na minha direção. O que é interessante falar é que, antes disso, não tinha ninguém na rua. A rua estava completamente vazia e não tinha movimento de pessoas. E, hoje, eu sei que seria um indicador, mas na época, com uma semana de missão, eu não tinha essa noção. Para mim era feriado e as pessoas não estavam na rua. E aí começou o apedrejamento muito forte.

Eu fiquei o tempo todo de cabeça abaixada me protegendo e o coronel Rocha dirigindo. O ataque foi muito intenso. Eram pedaços de concreto e a viatura foi ficando completamente destruída: os vidros todos quebrados e o barulho muito ensurdecedor das pedras na lataria. Até que chegou um determinado momento em que eu só senti uma batida muito forte. Quando eu olhei, na realidade, o carro tinha saído da pista e bateu na árvore.

Eu acho que diz que depois de toda aquela experiência traumática da primeira semana, que infelizmente meu colega foi repatriado e não pôde continuar na missão, que ficou um sentimento muito forte de prevenção.  

Quando eu olho para o coronel Rocha, ele estava com o maxilar deslocado: nariz quebrado, muito sangue. A viatura com muito sangue. Vidro e pedra na viatura inteira. E eu olho para ele oscilando entre a consciência e a inconsciência. E eu tinha me machucado. A sorte é que nós estávamos usando o cinto de segurança, o que machucou um pouco devido à intensidade, porque o carro estava em alta velocidade. Mas eu acredito que tenha ajudado que a gente não se machucasse mais. Bom, quando eu olho para ele, estava tentando ainda dirigir o carro. Mas não conseguiu, porque tinha sido perda total. Era impossível dirigir o carro. Aparece um homem vestindo camuflado e falando que a gente saísse do carro. Eu não tinha a noção e nenhuma identificação. Geralmente, nós os militares usamos identificação com nome e bandeira do país. Mas não tinha nada. A primeira ideia que eu tive é que seria um integrante de um grupo armado. E a população em volta.

Então, eu comecei a falar com ele em francês. A população centro-africana fala francês e sango. E eu comecei: nós somos brasileiros. Não estávamos fardados. Estava de traje civil, porque eu estava procurando um local. Falei que nós somos brasileiros, a gente não tem arma e está aqui para ajudar.

Nisso, ele continuando com mão na porta, e o coronel Rocha dizendo ‘não abre a porta’, até que num determinado momento chegou uma outra pessoa vestindo trajes africanos típicos. Eu não sabia até quem era. Ele apresenta a carteira da Minusca. Era um coronel do Congo que que estava ali para nos ajudar. Ele viu aquela situação da população em volta e aquele militar, que agora eu sei que ele é militar, mas aquele homem verde de camuflado com arma tentando conter. E ele para e começa a nos ajudar. Ele pede para que eu saia do meu local. Mas minha porta estava emperrada e eu não consegui abrir.

Márcia Braga está preocupada com atos hostis contra forças de paz no terreno
ONU News
Márcia Braga está preocupada com atos hostis contra forças de paz no terreno

ON: Tudo dando errado...

MB Tudo dando errado. E aí, eles conseguem tirar o coronel Rocha. Foi o primeiro a ser ajudado. Ele teve um traumatismo craniano, além de ele ter se machucado muito na face, ele teve um traumatismo craniano. E aí retiraram ele. Depois, eu saí pela mesma pela mesma porta. Nisso, quando ele tirou a gente, ele conseguiu parar e pediu para parar uma pick-up do Faca, sigla das Forças Armadas Centro-Africanas.

Era um dia muito quente. A gente foi colocada na caçamba do jeito que estava. Eu só me lembro que protegi o meu rosto na perna de um soldado, porque a gente teve que ficar abaixado pelo risco. E a gente conseguiu ser evacuada para os quartos de um Hospital da Serv. de nível 2.

Vale a pena falar um detalhe sobre esse dia: na realidade teve outros ataques. Outros civis morreram e da mesma maneira. O veículo foi apedrejado e depois atearam fogo com a pessoa ainda viva dentro. Então, a gente por muito pouco, e teve a presença desse militar, que depois eu soube que era da Força Armada, estava ali presente, que ajudou a contar situação. Mais um militar da ONU parou para nos ajudar.

ONU News: Quer dizer, era um protesto coordenado. Qualquer pessoa, militar ou não, pararia para pensar: é minha primeira semana no trabalho e eu acho que não vai dar para continuar. O que que você pensou?

MB: Olha, no momento o sentimento é de sair daquela situação. Você fica pensando o que eu posso fazer para administrar a situação? Depois que passou, o coronel Rocha foi repatriado. Primeiro, ele foi evacuado para Kampala, em Uganda. Depois ele foi repatriado para o Brasil. Não teria condições de continuar na missão. Eu depois passei por uma cirurgia. Enfim, mas depois que tudo isso passou, o que eu vejo que para mim foi algo e aprendizado muito forte é a importância daquele militar naquele local. E o que me fez sentir até ali também o querer continuar para ajudar aquela população. Ou seja, eu fiquei na mesma posição de vulnerabilidade daquela população.

A população centro-africana é uma população muito acolhedora, muito simples e de sorriso fácil. Acho que isso remete muito aos brasileiros. E tem a questão do futebol. Eles são apaixonados pelo futebol.

ONU News: Quer dizer que deu para sentir na pele a importância da missão naquela situação?

E a situação. Quando nós chegamos, a situação de segurança era muito complicada. Eram muitos incidentes de proteção contra população e ataques contra peacekeepers. Então, nós temos os dois lados. Isso foi antes de um acordo de paz que depois veio a ser assinado no início de 2019, e a situação estava muito complicada. Então, eu não queria sair e voltar para o Brasil. Eu tive até essa possibilidade. Foi-me perguntado se eu gostaria de voltar. Eu não queria voltar. Eu queria continuar.

E aí tive uma fase muito complicada, porque depois de uma semana eu não pude voltar para minha casa. Eu não podia voltar para o lugar em que eu estava morando nessa primeira semana, porque estava tendo troca de tiro direto. Eu fui apoiada por uma civil espanhola que me recebeu na casa dela. Para pegar as minhas coisas...tudo foi muito difícil. Para pegar as minhas coisas, o camuflado, mais camisetas e coisas para o dia a dia, foi difícil chegar e pegar.

Ganhadora do Prêmio de Defensora da Igualdade de Gênero da ONU destaca papel da mulher na consolidação da paz
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Ganhadora do Prêmio de Defensora da Igualdade de Gênero da ONU destaca papel da mulher na consolidação da paz

E depois, na casa dela, eu começando o curso me apareceu uma tumoração. Eu vim a passar por uma cirurgia. Enfim, várias coisas foram acontecendo. Mas eu acredito que um dos momentos decisivos, depois de cirurgia, foi a possibilidade ou não de continuar na missão. Porque a missão tem um certo limite: dependendo da situação de saúde você não pode continuar. Precisa ser repatriado. Então eu passei por esse momento de pode ou não ficar. Por essa decisão médica.

ONU News: E a sua persistência... depois se transforma num prêmio. Eleutério vai chamar no telão um vídeo.  Quando foi atribuído um prêmio de defensora de gênero. Vamos ver vamos ver o vídeo aqui. Olha quem foi? A Angelina Jolie. Como foi o encontro?

MB: É isso mesmo. Eu não estava preparada para receber a Angelina Jolie (Risos). Na verdade, quando eu cheguei me falaram que eu iria recebê-la. Eu fiquei aguardando a chegada da Angelina Jolie. Então, foi meio surreal, porque realmente era algo que eu não esperava: uma grande estrela de Hollywood. E ela foi super gentil. Ela é uma grande defensora de direitos humanos, dos refugiados e enfim. Foi incrível ter tido esse contato com ela, mas foi totalmente inesperado.

ONU News: Falou de defensora. Vamos ao prêmio que foi dado a você, o de defensora do gênero. A primeira. Num momento complicado. Narrou uma história que a qualquer um teria traumatizado, mas agora parece que está com uma luz nos olhos. O que diz essa luz?

MB: Eu acho que diz que depois de toda aquela experiência traumática da primeira semana, que infelizmente meu colega foi repatriado e não pôde continuar na missão, que ficou um sentimento muito forte de prevenção. E eu acho que esse sentimento norteou o meu trabalho, ou seja, eu entender quais grupos estavam mais vulneráveis naquela área. E usar isso no trabalho do componente militar para que tivesse a presença, a nossa presença naquelas áreas, para evitar aquelas violações que estavam acontecendo. Vem muito aí então a questão do gênero. O defensor e a questão de gênero podem-se aplicar em várias áreas. No meu caso, foi muito a parte da proteção de civis.

Entendendo, por exemplo, que no caso da República Centro-Africana, que a gente tem mulher e crianças em todo tempo cruzando as estradas, procurando por água, lenha para o fogo, ascensão para as plantações. Aquilo tudo para mim era muito claro que eram grupos muito vulneráveis. Estavam o tempo todo expostos. Então, aí é que vem esse trabalho: integrar essa questão e usar essa perspectiva, entendendo a diferença entre homens, mulheres e crianças naquela área, para que a gente pudesse prevenir e ter ali uma proteção de civis mais efetiva.

O que eu diria para aqueles que estão começando é ouvir. Ter um maior engajamento com as comunidades e fazer um trabalho conjunto. Porque não é só o peacekeeper no final.

ON: E agora eu queria mostrar o segundo vídeo, porque a gente tem três. Eu vou dar outro. O segundo vídeo, e olha que bonito, ela recebendo das mãos do secretário-geral, Antônio Guterres, o prêmio...Não é isso? Capitã, hoje em dia os boinas-azuis não são mais recebidos daquela maneira como eram há dezenas de anos quando a missão começou. A senhora, que trabalha com comunicação, como vê essa questão da desinformação e das informações falsas deliberadas nas missões?

MB: Isso é um problema muito sério que a gente está enfrentando agora. Eu vejo muito, Mônica, a questão de um trabalho de comunicação mais proativo. A gente tem que informar e falar o que está fazendo. Mostrar o impacto do nosso trabalho. É claro que a força tem limitações. A gente não pode estar todo tempo em todo lugar. Muitas vezes, as violações vão continuar acontecendo. A gente vai continuar tendo problemas, muitas vezes em nível político que por vezes está um pouco distante do soldado e resolver. Mas o que eu vejo é muito a necessidade de mostrar o que a gente faz. O nosso propósito. O nosso mandato. O que a gente está fazendo e os resultados que está obtendo.

Porque, como eu disse, a gente não pode estar em todas as partes. Mas quantas violações nós estamos prevenindo com a nossa presença? Quantas negociações a gente não está facilitando, incluindo mulheres naquela mesa de negociações, que era algo tão difícil de ser visto. A ONU tem essa preocupação em aumentar a participação feminina. Então, essa questão da desinformação enfraquece quando a gente tem um trabalho proativo. Mostrando o que a gente está fazendo, comunicando com as comunidades locais, com as lideranças e mostrando o nosso trabalho.

Márcia Braga foi reconhecida pelo secretário-geral António Guterres com o Prêmio de Advogado Militar do Ano da ONU
ONU/Cia Pak
Márcia Braga foi reconhecida pelo secretário-geral António Guterres com o Prêmio de Advogado Militar do Ano da ONU

ON News: Está ali a comunicar com as comunidades. Às vezes elas não têm telefone celular para receber boas notícias, mas conseguem receber as más, um desafio. O que diria a uma aspirante a ser o que a capitã é hoje?

MB: Olha, eu acho que é estar aberto a esse trabalho. É buscar esse trabalho muito próximo às comunidades. O que eu aprendi muito no meu trabalho foi justamente na minha interação com as organizações de mulheres. Na minha organização com as lideranças e com a comunidade como um todo. Você muitas vezes está em patrulha e é para conversar com as pessoas, para ouvir.

ON: E faz a diferença....

MB Faz toda diferença agenda que as pessoas querem ser ouvidas e a gente aprende. Para gente que trabalha, né, com a parte de segurança é fundamental entender como aquela população está sendo afetada pelo conflito. Quais as dificuldades? As crianças que não podem ir às escolas... Então é fundamental. O que eu diria para aqueles que estão começando é ouvir. Ter um maior engajamento com as comunidades e fazer um trabalho conjunto. Porque não é só o peacekeeper no final. Num momento em que a missão vai sair a comunidade vai continuar. Então, o trabalho é para ser construído junto. A gente só está ali para ajudar a apontar o caminho, mas quem constrói mesmo a própria população.

ON: E do Brasil, o que fica com aquela população com quem acabamos de vê-la?

MB: Eu acho que do Brasil fica a alegria, a questão do sorriso. A população centro-africana é uma população muito acolhedora, muito simples e de sorriso fácil. Acho que isso remete muito aos brasileiros. E tem a questão do futebol. Eles são apaixonados pelo futebol, então isso também é o fato de ter uma bandeira do Brasil no braço ajudava muito no trabalho e as pessoas se aproximavam. O que era muito bom.

ON: Capitã-de-Fragata Márcia Braga, que pena que nosso tempo está acabando. Mas muito obrigada pela sua entrevista e por essa conversa tão importante. E saber o grande trabalho, a diferença que os boinas-azuis fazem no terreno, para a vida de tantas pessoas e o que sofrem também.

MB: Obrigada.