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Oceanos são inseparáveis das alterações climáticas e existenciais para o futuro

Miguel de Serpa Soares disse que a ONU tem a expectativa de ver uma declaração política muito forte sobre oceanos após conferência sobre o tema em Lisboa

Uma coisa preocupa-nos: que o objetivo de desenvolvimento sustentável 14 seja um dos mais atrasados em termos de execução e o que menos recebeu menos financiamento até ao momento

Miguel de Serpa Soares , Subsecretário-geral da ONU para Assuntos Jurídicos

ONU/Eskinder Debebe
Miguel de Serpa Soares disse que a ONU tem a expectativa de ver uma declaração política muito forte sobre oceanos após conferência sobre o tema em Lisboa

Oceanos são inseparáveis das alterações climáticas e existenciais para o futuro

Clima e Meio Ambiente

A Conferência dos Oceanos começa este 27 de junho, em Lisboa; às vésperas do evento, o porta-voz da reunião, Miguel de Serpa Soares, fala de alguns cenários na comunidade internacional. O também subsecretário-geral para Assuntos Jurídicos mencionou papel de mulheres e jovens para se alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, ODS 14, que trata dos mares. Serpa Soares conversou com Eleutério Guevane.

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ONU News: Miguel de Serpa Soares é assessor jurídico das Nações Unidas e porta-voz da Conferência dos Oceanos, que vai acontecer em Lisboa. Estamos próximos da semana em que mais se vai ouvir falar de oceanos. O evento culmina com uma ação, a ser refletida numa declaração normalmente, pelos Estados. Vamos falar desses dois possíveis cenários: com e sem declaração.  O que é que seria para os oceanos logo a seguir ao evento? É bem-vindo a esta conversa.

Miguel Serpa Soares: Eu estou absolutamente confiante que vai haver declaração. E a declaração não representa mais do que um compromisso político claro e firme dos Estados de dedicar uma atenção redobrada ao tema dos oceanos e de se comprometerem em ações específicas na defesa dos oceanos.

A declaração política, enquanto si, não resolve os problemas dos oceanos. Mas é um elemento muito importante num processo de sensibilização internacional, que obviamente tem que envolver os governos, de dedicar mais atenção ao tema dos oceanos. É um tema absolutamente existencial para a toda a humanidade. De maneira que, com ou sem declaração, essa semana em Lisboa será uma semana dedicada aos oceanos.  Mas insere-se também num processo de discussão destes temas que já começou há algum tempo.

Nós tínhamos planeado outros eventos. A pandemia atrasou este calendário todo. Falou-se que 2020 seria um super ano dos oceanos. E depois 2021. Aqui estamos em 2022. É um ano em que vamos ter muitos temas ligados aos oceanos. Vamos prosseguir, para além da conferência de Lisboa, já tivemos duas conferências internacionais importantes em Palau sobre estes temas.

Temos uma negociação muito importante a decorrer no âmbito da ONU relativamente à biodiversidade nas áreas para lá da jurisdição nacional. Parece complicado, mas no fundo é muito simples: é toda a área dos oceanos que não está submetida à jurisdição dos Estados e representa mais ou menos 70% da superfície dos oceanos. Portanto, há várias ações em curso. Eu penso que há uma atenção redobrada a este tema. Sobretudo há muita atenção, neste momento com base em avanços científicos e novos dados que os cientistas nos dão, sobre o nexo entre oceanos e alterações climáticas que é um tema que se fala muito.

Os oceanos, em si mesmo, são o maior depósito de dióxido de carbono na natureza.  Em cada segundo, o fôlego que nós respiramos tem origem nos oceanos. É um tema absolutamente existencial nas suas implicações ambientais, económicas, sociais e geoestratégicas. Esperemos que esta forte declaração política seja o princípio de uma ação mais energética dos governos. Que, obviamente, a sociedade civil e os diferentes atores: academia, organizações não-governamentais e da juventude, acompanhem este esforço porque todos nós podemos fazer qualquer coisa pelos oceanos.

Lisboa em contagem regressiva para a Conferência dos Oceanos

 

ON: Falou de negociações. No contexto destas conversas, o que será o fator decisivo para que o evento de Lisboa tenha sucesso?

MSS: Sabe que eu penso que a vontade e política estão lá. O texto da declaração foi longamente negociado. Como eu disse no princípio, eu estou absolutamente confiante que a declaração vai ser vai ser aprovada. Mas eu estou muito mais interessado, para além da declaração, que haja um fortíssimo envolvimento de outros setores da sociedade. Que Lisboa seja uma plataforma verdadeiramente mundial e verdadeira abrangente, que inclua cientistas, organizações de juventude organizações não-governamentais. No fundo, que haja um interesse e um debate generalizado sobre o tema dos oceanos. Há muitos eventos em Lisboa envolvendo  diferentes atores. Eu penso que é uma semana que nós vamos dedicar e vamos olhar para o mar. Vamos pensar nos problemas do mar todos em conjunto. É uma iniciativa que, para mim, está condenada ao sucesso de qualquer maneira.

Conferência em Lisboa também tem o objetivo de incrementar os planos de promoção da economia azul
© Ocean Image Bank/Jordan Robin
Conferência em Lisboa também tem o objetivo de incrementar os planos de promoção da economia azul

 

ON: Há uma questão essencial, como é que Lisboa vai fazer a diferença para que este esforço seja realmente considerado pelos países, principalmente os que não o têm cumprido, exatamente.

MSS: Uma coisa preocupa-nos: que o objetivo de desenvolvimento sustentável 14 seja um dos mais atrasados em termos de execução e o que menos recebeu menos financiamento até ao momento. Ora bem, nesse tipo de situações mais do que identificar quais as razoes por detrás desse incumprimento,  e o trabalho que temos a fazer todos, as Nações Unidas, os governos os diferentes elementos da sociedade, é ajudar os Estados atingir as metas no Objetivo 14 procurando compreender. Porque cada caso é específico. Em cada caso, quais são as razões que levam a esse incumprimento ou ao cumprimento mais demorado.  Percebendo as razões específicas de cada país, algumas têm a ver com a falta de capacidade e outras com falta de recursos financeiros.

Portanto, quando se perceber o que é que está por detrás de cada situação e quais são as razões, aí pode-se entender de uma maneira mais eficaz e tentar ajudar o Estado e as comunidades locais como gerir os problemas específicos que encontram.

Oceano é alvo de grandes medidas para mitigar as mudanças climáticas
ICS/Craig Nisbet
Oceano é alvo de grandes medidas para mitigar as mudanças climáticas

 

ON: Falando desta intervenção internacional, há dois grupos muito importantes: mulheres e jovens. Pessoalmente é um Campeão Internacional de Promoção de Gênero. Que expetativas há em relação a esta conferência e maior envolvimento destes grupos na uma ação efetiva neste campo dos oceanos?

MSS: Eu fico contente com certeza porque é um tema relativamente novo, que há 10 anos ninguém falava deste assunto. Obviamente, a questão de igualdade de género é mesmo um Objetivo na Agenda 2030. Portanto, o que nós possamos fazer para melhorar as condições e a visibilidade de mulheres e raparigas é muito importante.

Ora, o Objetivo, relativamente aos oceanos, abrange obviamente problemas de género. Pensamos que, por exemplo, a maior parte do trabalho de indústrias menos qualificado ou mais mal pago é feito por mulheres. Nós temos estudos que nos dizem que, sistematicamente, o elemento feminino é pago menos do que o equivalente masculino.

Este tipo de situações convém falar delas, e convém também tentar que as mulheres e raparigas façam parte do processo de tomada de decisão que afeta as suas comunidades locais, comunidades piscatórias, comunidades costeiras. E é um tema que nunca se falava até agora e tem que se tomar em conta. Este é um tema que vai ser discutido em Lisboa, o que me alegra, e é um tema que tem que estar presente em todas as áreas de atuação de oceanos, na comunidade científica, nas comunidades de organização local... reativar a pesca e as indústrias alimentares. Há muito trabalho a fazer.

A juventude, em termos pessoais, tem que estar mais envolvida, porque eu tenho mais esperanças de que a juventude mude alguma coisa do que os menos jovens, por assim dizer. São mais conservadores e memos resistentes às mudanças. A minha esperança é exatamente os jovens que até ao momento aderem muito facilmente a esta mensagem. Eles percebem perfeitamente o desafio. Percebem que este é um patrimônio comum da humanidade, que representa a parte do seu futuro, e, portanto, penso que há mais determinação, mais capacidade e mais vontade de mudança por parte dos jovens. Nós podemos encorajar isso através de pequenas ações que nem custam muito dinheiro. Nada de significado. Por exemplo daqui a cinco seis anos...

Para comemorar o Dia Mundial dos Oceanos, que foi no dia 8 de junho, eu fui com várias escolas aqui da cidade de Nova Iorque nas praias Rockaway. Uma campanha de limpeza de plásticos na praia em que cada miúdo, cada criança, recebe um saco e recolhe resíduos. E é uma coisa festiva. Os miúdos percebem isto muito bem. Um miúdo vai dizer aos seus pais para não deitar um bocado plástico  na água. E esta educação para os oceanos e para o ambiente geral é mais fácil na juventude e nas crianças do que nas pessoas mais velhas, que são mais resistentes à mudança.

Quase 3 bilhões de pessoas no mundo, a maioria em países em desenvolvimento, tiram seu sustento dos oceanos
© Beqa Adventure Divers
Quase 3 bilhões de pessoas no mundo, a maioria em países em desenvolvimento, tiram seu sustento dos oceanos

 

ON: Mais algo a dizer agora, já mesmo às vésperas desta conferência em Lisboa?

MSS: Como disse estou muito confiante, como disse, que vai ser um momento e uma chamada de atenção com muita visibilidade para os oceanos. Mas que permaneça para o futuro. Temos outros eventos este ano relativamente aos oceanos: as negociações da biodiversidade relativas a áreas fora da jurisdição nacional. Mas tem que haver outros.

Este tema tem que começar a ser permanente na agenda política internacional. E, aliás, para mim é um tema absolutamente, como os cientistas nos dizem, inseparável das alterações climáticas. São temas existenciais para o futuro da humanidade e, portanto, temos que os pôr no centro da ação política internacional, mas tentando envolver outros parceiros. Mas não são só os governos que vão resolver todos os problemas. Todos nós temos que dedicar parte das nossas energias e da nossa motivação para gerir este tipo de problemas.