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Entrevista: Cristina Duarte, conselheira do secretário-geral para a África   BR

Cristina Duarte defende uma implementação efetiva de políticas públicas no continente africano

O dinheiro está em África

Cristina Duarte , conselheira do secretário-geral para a África  

ONU/Manuel Elias
Cristina Duarte defende uma implementação efetiva de políticas públicas no continente africano

Entrevista: Cristina Duarte, conselheira do secretário-geral para a África  

Desenvolvimento econômico

As Nações Unidas acolhem até o final deste mês, a Série de Diálogos sobre África 2022. O lema é “Construir resiliência na nutrição: Acelerar o capital humano e o desenvolvimento socioeconômico da África”.

A subsecretária-geral Cristina Duarte, que é de Cabo Verde, discute a economia pós-recuperação, acesso a fundos, segurança alimentar e alternativas oferecidas pela economia azul.

ONU News: Em Destaque ONU News Especial conversamos com a subsecretária-geral das Nações Unidas, que é também conselheira do secretário-geral António Guterres para os Assuntos Africanos. Cristina Duarte muito bem-vinda. 

Vamos falar sobre a série de Diálogos Sobre a África 2022. O foco está na construção de resiliência para fazer frente a questões de nutrição no continente, no capital humano e no desenvolvimento. Este é um momento em que o mundo enfrenta situações críticas: a guerra na Ucrânia e questões financeiras globais. Como é que se pode conjugar o tema de otimismo projetado neste encontro à situação crítica que o mundo vive.

África deve transformar crises em oportunidades

 

Cristina Duarte: Obrigada por esta oportunidade. Deixa-me começar por sublinhar a importância do tema da União Africana para 2022. Capital humano, mas em quatro dimensões. A dimensão nutrição, a proteção social e as cadeias alimentares ou os sistemas alimentares. 

Eu, como africana, como é que eu entendi este tema?  É claramente uma chamada da União Africana aos líderes africanos para colocarem as pessoas, o capital humano, no centro das políticas públicas. Por quê? Eu acredito que este tema pretende alavancar as oportunidades que estão a surgir no seguimento das roturas causadas pela Covid-19.

Para temos uma economia azul, ou seja, oceanos que estão ao serviço de um desenvolvimento inclusivo, há uma coisa temos que fazer previamente. É  preservar os oceanos

A Covid-19 causou uma série de roturas. Nós africanos só temos uma alternativa. Quando olhamos para essas roturas e enfrentamos crises nós só temos uma alternativa: é ver as oportunidades. A Covid-19 entrou nas nossas mesas, nas nossas vidas e nas nossas casas, um conjunto de roturas que têm que ser necessariamente processadas por nós, cada um de nós africanos, como oportunidades. Uma das oportunidades é colocar o capital humano no centro das políticas públicas. É esta forma como eu entendi o tema da União Africana.

Agora nós temos um desafio. A situação hoje em África com a Covid-19 e guerra na Ucrânia é difícil, dramática. O nível de pobreza aumentou. Nós ainda não tínhamos conseguido resolver todos os problemas que emergiram da pandemia e ainda estamos a tentar entender como fazer, o que fazer, quando fazer e com que recursos quando veem estes impactos da guerra na Ucrânia, em termos de estabilizar novamente as cadeias alimentares, particularmente na produção cerealífera mundial, a inflação etc.

Criança usa máscara em Joanesburgo, na África do Sul
Unicef/Shiraaz Mohamed
Criança usa máscara em Joanesburgo, na África do Sul

 

Eu costumo dizer que em África nós só temos uma alternativa: é de olhar para estas crises pela janela de oportunidade.

ON: Como é que se pode usar a questão da guerra na Ucrânia como oportunidade?

CD: Eu acho que o que está a acontecer neste momento é dizemos, mais uma vez, que apesar de nos últimos 30, 40, 50 anos termos vindo a falar da importância da agricultura como o motor do crescimento em África, que emprega 65% da população, que emprega uma massa de jovens africanos...Estamos a dizer isso há 40 ou 50 anos. Mas a verdade é que nos últimos 30 ou 40 anos, de acordo com os dados do Banco Africano de Desenvolvimento, a produção global aumentou 145%. O que aconteceu à produção africana neste mesmo período? Diminuiu 10%. 

Então temos aqui uma contradição. Temos todo o discurso de política que fala da importância da agricultura e das cadeias alimentares, mas quando nós olhamos para os resultados há aqui qualquer coisa que não bate. Então, mais uma vez, esta crise deve permitir-nos fazer um reset do nosso mindset (renovar a mentalidade). E aí eu acredito que temos que apostar em três coisas: primeiro, de uma vez por todas, resolver a questão fundiária em África. O acesso à terra por parte de quem produz.

A Covid-19 causou uma série de roturas. Nós africanos só temos uma alternativa

Segundo a questão tecnológica. Eu vou dar um exemplo. Neste momento, o déficit em matéria cerealífera em África é de menos 320 bilhões de toneladas. Intervindo tão somente na produtividade, eu não estou a dizer cultivar mais...Na produtividade da terra que já é utilizada, podemos passar de uma situação de défice de menos 320 para uma situação positiva de mais de 350 bilhões.

A questão tecnológica é importante. Estamos a falar de soluções tecnológicas ou técnicas que já existem. Eu acabei de dizer num webinar, que o Osaa organizou conjuntamente com a FAO no âmbito da Série de Diálogos sobre a África, que as questões técnicas podem ser vistas como uma lógica de supermercado. Elas estão lá nas prateleiras, é só ir escolher e aplicar. 

Seca na Somália
UNDP Somalia
Seca na Somália

 

O que é que falta?  É isso que a gente tem que perguntar. O que é que falta para massificar a distribuição de melhores sementes em África? Sementes que já existem há 15 anos ou 20 anos? O que falta para quebrar os níveis baixos de bancarização da população agrícola, particularmente as mulheres? Aqui é uma questão de género que é extremamente pertinente. O que é que falta?

A ministra da Agricultura do Sudão do Sul, que participou nesta webinar, colocou um número sobre a mesa que me deixou um pouco abalada. Neste momento 5%  da população no Sudão do Sul é bancarizada. Ou seja, há um problema de exclusão financeira. Este problema de exclusão financeira reflete exclusão em termos de acesso a ativos. Porque se não se tem ativos, não se pode gozar de inclusão financeira. 

O dinheiro está em África

Nós sabemos qual é a lógica bancária. Portanto, há todos estes problemas discutidos há mais de 30 anos. O que temos que entender é porque não conseguimos implementar estas soluções da forma massiva. Há excelentes histórias em África e exemplos no setor agrícola, no setor das cadeias alimentares, que têm sido um sucesso.  O que é que nos tem prevenido de multiplicar isto.

ON: E isso leva a uma outra questão. Que medidas é que se podem tomar, de facto, com base nessas histórias,  para se avançar. O momento é de mudanças climáticas em que se precisa garantir a segurança alimentar. O que é que se pode fazer de imediato?

CD: Isto leva-me a outra questão. Para bancarizar a população de um país, para massificar o acesso a sementes tecnologicamente mais resistentes que possam aumentar a produtividade da produção agrícola em África, como aconteceu há 25 anos na Ásia, nós temos que, de uma vez por todas, chegar à conclusão de que devemos construir instituições. Aí voltamos ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16. Eu penso que uma das peças que está a faltar neste puzzle são instituições fortes e estruturadas que possam implementar políticas públicas de forma eficaz. Porque senão continuamos só nos diálogos. E fica aqui a faltar a implementação efetiva de políticas públicas.

ON: Eu vou colocar para terminar uma questão. Como é que faria o resumo destes diálogos? Antes, há uma conferência dos oceanos que vai acontecer em Lisboa daqui a algumas semanas. A questão é impulsionar a economia azul envolvendo jovens, mulheres, comunidade científica e outros atores como políticos. Acredita nisto em África?

Enfermeira no Mali prepara uma dose de vacina
Foto: © UNICEF/Seyba Keïta
Enfermeira no Mali prepara uma dose de vacina

 

Eu acho que para temos uma economia azul, ou seja, oceanos que estão ao serviço de um desenvolvimento inclusivo, há uma coisa temos que fazer previamente. É  preservar os oceanos. Porque se não preservamos este ativo, este nunca será um ativo do ponto de vista económico. Para falar em economia azul, permita dizer, temos que preservar o azul. O que não está a acontecer. Eu vou dar um exemplo com os sacos de plástico. O Bangladesh foi o primeiro país no mundo que baniu os sacos de plástico, em 2002. Há 20 anos. Hoje, tão somente 50% dos países no mundo baniram os sacos de plástico. Destes, 50%, só oito mais ou menos, é que baniram de forma radical. Os outros baniram de forma intermédia, ou seja, nós não estamos a fazer o suficiente para preservar o azul para podermos construir uma economia azul. Portanto, eu acho que aí temos que ser mais incisivos.

A situação hoje em África com a Covid-19 e guerra na Ucrânia é difícil, dramática

Será que até lá podemos dizer que todos os países do mundo baniram os sacos de plástico? Porque os sacos plásticos, como nós sabemos, mais dia ou menos dia vão parar nos oceanos. É lá onde vão parar: ou com as chuvas, com os rios, com riachos, os ventos...Até à conferência de Lisboa podem todos os países no mundo banir os sacos de plástico, de forma consequente e real, e preservar o azul?

ON: Que outras questões neste momento são relevantes para aumentar a segurança alimentar em África, para terminar?

CD: A crise ucraniana trouxe à tona, de forma dolorosa, a elevada dependência alimentar e cerealífera do continente. Ou seja, trouxe à tona um paradoxo: um continente que tem todas as condições para ser um global player (ator global)  no mercado cerealífero mundial equipara-se com uma situação de extrema dependência.  Isto deve nos interpelar a todos. Não só aos policymakers, mas a todos. A cada africano que existe. 

Cerca de 34% das famílias africanas vivem abaixo da linha de pobreza de US$ 1,90 por dia.
Uncdf
Cerca de 34% das famílias africanas vivem abaixo da linha de pobreza de US$ 1,90 por dia.

 

O que eu acho é que nós, no caso deste choque externo, não nos podemos focalizar nos problemas com uma lógica de dependência, mas temos que nos focalizar nas soluções com uma lógica de independência. 

O Made in África (produzido em África).  Será isto uma forma dramática para aumentar de forma dramática a segurança alimentar em África? Eu acho que sim. Há três aspectos: a política fundiária, pois não adianta continuar a driblar e temos que a enfrentar. A questão tecnológica e a questão do financiamento.

O Bangladesh foi o primeiro país no mundo que baniu os sacos de plástico, em 2002. Há 20 anos. Hoje, tão somente 50% dos países no mundo baniram os sacos de plástico

Relativamente à questão do financiamento, não numa lógica de olhar para fora e achar que o dinheiro está fora da África. Não. O dinheiro está em África. 

Neste momento posso dar alguns números: fluxos ilícitos envolvem US$ 86 bilhões. Ineficiência em termos de despesas públicas na educação em torno de US$ 22 bilhões. Ineficiência em termos de despesas públicas e saúde US$ 12 bilhões e outros US$ 18 milhões... Se somarmos tudo entre fluxo e a ineficiência de despesas públicas chegamos a US$ 150 bilhões.
Nós temos os recursos para mobilizar recursos. Claro que os recursos domésticos africanos não são suficientes para financiar todas as nossas necessidades, mas são mais do que suficientes para pôr a África numa posição de mais justiça em termos de aceder aos mercados internacionais de capital.   
 

Porto de São Tomé e Príncipe
Unctad/Jan Hoffmann
Porto de São Tomé e Príncipe