Entrevista: Cristina Duarte, conselheira do secretário-geral da ONU para África

Ex-ministra da Finança de Cabo Verde, ela assumiu o posto em 2020; Cristina Duarte lançou rede de especialistas africanos para ajudar a avançar agenda de desenvolvimento no continente; ela aposta no intercâmbio na cultura, na economia, ciência e tecnologia para criar sinergias que ajudem nações em desenvolvimento; para Cristina Duarte a Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável precisa também de ativos intangíveis para ser cumprida.
Cristina Duarte: Obrigada, Monica. De facto, nós criamos esta rede de especialistas africanos. O objetivo primeiro, eu penso que é óbvio. Há uma necessidade grande de aumentar a voz africana nos debates globais. A saída da crise tem que ser uma saída que envolva todos. Não podemos continuar uns à volta da mesa e outros fora da mesa. Portanto, África tem capacidades, África tem vindo a pensar o seu destino. A Agenda 2063 é a prova disso. Nós sabemos, claramente, o que a África pretende. Qual é a visão africana. Portanto, a rede de especialistas africanos discutiu vários assuntos. Desde o impacto do Covid, ao grande desafio do financiamento para o desenvolvimento, que estratégia em matéria de energia para África, como processar os desafios em termos da mudança climática etc. 2022, o que é que temos? Temos essa rede consolidada. Como tu sabes, ela foi criada em junho do ano passado, discutindo, pensando basicamente seis questões: a questão do financiamento para o desenvolvimento, a questão de uma paz sustentável em África, essencialmente através do desenvolvimento porque só o desenvolvimento consegue produzir uma paz sustentável. A problemática do capital humano. Associada à problemática do capital humano, vamos discutir o papel da ciência, da tecnologia e da inovação para que África possa, de facto, dar saltos rumo àquilo que o secretário-geral chamou Recovering forward better (Recuperando melhor no futuro) e como não deveria deixar de ser, vamos discutir o dividendo demográfico e como é que o acordo em termos da criação de uma zona única em África econômica poderá ajudar ao policy making em África a resolver este problema do dividendo demográfico, nomeadamente, relançando um programa bastante ambicioso de industrialização. Por último, a necessidade da narrativa africana em termos de mudanças climáticas e energia ser bem estruturada rumo ao COP 27 (a Conferência da ONU sobre Mudança Climática, marcada para Egito). Como vês, a agenda é plena, e esta rede acima de 100 especialistas africanos está completamente engajada.
CD: Mónica, tu sabes que eu tenho vindo a ser uma defensora de que as nossas respostas, nossas para o desenvolvimento africano têm que equacionar, cada vez mais, os ativos intangíveis. É importante construir estradas, pontes. Mas também é importante colocar as instituições certas dimensionadas, estruturadas, porque dificilmente conseguiremos implementar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis se não prestarmos atenção aos ativos intangíveis. Estou a falar de instituições. Ora, quando falamos em instituições em África e o papel que as instituições devem desempenhar nesse construir pós-Covid 19, a digitalização é de facto, eu diria, a fruta que está madura na árvore, a fruta que permitirá o policy making, a governança, em África, a dar saltos qualitativos enormes. Por exemplo, a digitalização das administrações públicas, de forma integrada, de A a Z. Eu gostaria só de dar um exemplo para ver o potencial disso. Por exemplo, o Sydonia World da Unctad pode ter um impacto incomensurável em termos de geração de receitas aduaneiras, e ter o impacto nos orçamentos e no espaço fiscal africano, digitalizando as administrações aduaneiras em África para combater os frutos ilícitos. Como nós sabemos, 65% vêm exatamente da administração aduaneira. Portanto, a digitalização é aquela fruta que está madura na árvore e que nós podemos colher e ter um resultado nos próximos, eu diria, dois a três anos, Monica.
CD: Como sabes, Monica, o Escritório que me apoia na qualidade de conselheira do secretário-geral, tem a responsabilidade de analisar os conflitos em África, mas usando pela via do desenvolvimento porque como eu disse só há uma forma de ser conseguir uma paz durável é promovendo o desenvolvimento. E nessa promoção do desenvolvimento, há uma peça que é fundamental: as políticas devem ser centradas no capital humano. Queremos paz em África? Então vamos promover a educação para todos, a saúde para todos, vamos levar água, vamos levar energia. Ou seja, os Estados em África têm que ocupar o seu território. Eu acredito profundamente que só pela via do desenvolvimento é que é possível resolver os conflitos em África de maneira sustentável e durável.
CD: Excelente notícia, Monica. Excelente. Eu como africana, sinto um profundo orgulho de como os países africanos, os líderes africanos geriram o Covid-19, nos últimos dois anos. A solidariedade, o engajamento atingiram níveis excepcionais. A forma como a União Africana geriu todo esse processo, galvanizando, juntando, tentando explorar todas as nossas vantagens compartidas e, ao mesmo tempo, reconhecendo as nossas fraquezas. E é impressionante como nesta matéria, podemos reconhecer também como o Sistema das Nações Unidas se alinhou com as prioridades africanas e com as prioridades determinadas pela União Africana. Ou seja, quando há pressão, há crise, parece que surge um potencial invisível. E este potencial foi devidamente acionado. E nós temos uma África, como disseste, pronta para começar a produzir vacinas. Esta mesma África está pronta para aproveitar a oportunidade do Covid-19 e resolver todos os problemas que vão para além da vacina do Covid-19, mas que estão no setor farmacêutico em África. Como tu sabes, há um profundo défice no setor farmacêutico africano. As condições foram criadas para resolver também os problemas no setor farmacêutico agarrando a oportunidade do Covid-19. Eu acredito que 2022 será um ponto de inflexão nesta matéria.