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A África em transição energética, tecnológica e de mercados

Vice-chefe da Comissão Econômica da África, António Pedro (à direita)
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Vice-chefe da Comissão Econômica da África, António Pedro (à direita)

A África em transição energética, tecnológica e de mercados

Desenvolvimento econômico

Vice-chefe da Comissão Econômica da África fala à ONU News a respeito do Fórum de Kinshasa sobre energias renováveis, marcado para este mês, promoção de tecnologias e avanços na zona africana de livre comércio

António Pedro conversou com Eleutério Guevane também sobre o papel da lusofonia com foco na importância do grupo de países no continente ou como parte da cooperação internacional.

Entrevista: A África em transição energética, tecnológica e de mercados


ONU News, ON: António Pedro é o vice-secretário executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para África, ECA. Acaba de iniciar o seu mandato com um desafio: liderar o Fórum de Kinshasa que vai reunir chefes de Estado, de governo e outras figuras de alto nível para impulsionar o fim da utilização do carvão em África. É muito bem-vindo. Esta medida pode ser interpretada já como um ato de retoma de ações de desenvolvimento para o continente?

António Pedro: Há de se recordar que há cerca de quatro meses o secretário-geral organizou um encontro, uma mesa redonda global sobre as questões de desenvolvimento na indústria extrativa. 
Um dos participantes foi o presidente da República Democrática do Congo, Felix Tshisekedi, esteve presente e anunciou na altura a realização deste fórum. Nós, a Comissão Econômica das Nações Unidas para África, temos vindo a trabalhar com o governo com vista à realização do fórum.

Nós estamos satisfeitos com o progresso que se está a verificar, paulatinamente, em nível do continente. Há países onde por causa de entrada em vigor da zona livre comércio africano já estão a atrair investimentos importantes para a industrialização do continente e isso é importante.

É um fórum que está feito em parceria com o governo, assim com um Banco Africano Desenvolvimento, Badea, AfreximBank, Cooperação Financeira Africana e o UN Global Compact. Como disse é uma oportunidade para África mudar de paradigma. Na maior parte dos países africanos, ricos em recursos minerais, o que acontece é que esses países exportam matéria-prima. Neste caso específico estamos a falar de baterias para carros elétricos e energia renovável. Portanto, que é essencial para transição para as energias limpas. Neste mesmo domínio, o secretário-geral também tem ambições muito claras: a tanto na transição para a contribuição muito mais profunda de energias renováveis, a eliminação da utilização do carvão até 2030, com redução completa de investimentos nesse setor e outras. Então, o fórum vai contribuir exatamente para essa transição. Neste caso específico, posso acrescentar que acontece no país certo porque a República Democrática do Congo produz cerca de 70% do cobalto, que é um mineral para a produção de baterias essencial.  Um mineral crítico. Produz 70% desse mineral, mas, no entanto, agora porque está na cauda inferior da cadeia de valor, só retém cerca de 30% do valor que representa esta cadeia.
E então, nós vamos aqui para Kinshasa com a determinação de ver mudar deste cenário. Por isso é que se fiz referência a uma mudança de paradigma.

ONU quer transição para a contribuição muito mais profunda de energias renováveis
Unicef/Olivier Asselin
ONU quer transição para a contribuição muito mais profunda de energias renováveis

ON: Que ações podemos ver enquadradas nesta nova era para África?

AP: Como diz a diretora Vera Songwe, a secretária executiva da Uneca, é uma era onde o acordo de comércio livre africano vai ser o Plano Marshall para África. Porque com as aberturas comerciais que estão associadas com esta Zona Livre do Comércio Africano, nós podemos ter acesso a um mercado agora de cerca de 1,2 bilhões de habitantes. E se as projeções estiverem certas, em 2050 vamos ter cerca de 2,5 bilhões de habitantes em África, que é a população combinada da Índia e da China hoje. E é só ver o que a China conseguiu fazer com estes números: conseguiu ser o grande polo de desenvolvimento global e é o que se espera que a zona livre comece também a criar no continente.

ON: E quais os passos imediatos para a retoma desta estratégia depois deste período de espera de quase 20 meses com a pandemia?

AP: O que nós, e assim como a União Africana, estamos a fazer é ajudar os africanos a formular as suas estratégias nacionais para a zona. Isto é que ver como eles podem se inserir de forma proveitosa dentro desta zona livre. Nós vamos fazer isso em todo o continente, porque em todo o continente isto é importante para que todos sejam ganhadores deste processo de liberalização. E isto é um processo que envolve a participação de muitos atores, incluindo o setor privado, informal, e de empresas de pequena e média escala. 

O fórum vai contribuir exatamente para essa transição. Neste caso específico, posso acrescentar que acontece no país certo porque a República Democrática do Congo produz cerca de 70% do cobalto, que é um mineral para a produção de baterias essencial.


Para além disso, há todo o processo de negociação com vista a se terminar, em cada região, o que é que vai ser comercializado sem taxas numa primeira fase. O que é que vai ainda beneficiar de uma certa proteção com base no processo de industrialização desses países? Nós estamos satisfeitos com o progresso que se está a verificar, paulatinamente, em nível do continente. Há países onde por causa de entrada em vigor da zona livre comércio africano já estão a atrair investimentos importantes para a industrialização do continente e isso é importante.
Voltando mais uma vez para o Fórum de Kinshasa, é o propósito do fórum e de muitas das nossas intervenções no continente: permitir que o continente africano se industrialize, sem industrialização não há comércio, e naturalmente sem comércio os incentivos para se produzir em grande escala também não estão à altura das ambições do continente. São as duas da moeda.
 Nós estamos a trabalhar nesse sentido. Antes de assumir esta função era o diretor do Escritório Regional da África Central, baseado em Yaoundé nos Camarões, e nós contribuímos para, entre outros domínios, ajudar vários países a começar a inutilização de produtos que antes eram exportados como matéria-prima. 

Escritório das Nações Unidas em Adis Abeba, na Etiópia
ECA/Antonio Fiorente
Escritório das Nações Unidas em Adis Abeba, na Etiópia


Por exemplo, Camarões beneficiaram do nosso apoio para uma releitura do seu plano de industrialização. Nós conseguimos mobilizar a cooperação financeira africana para ser um dos parceiros no desenvolvimento de zonas econômicas de exclusivas, onde se vai fazer o processamento de madeira que dantes era exportada se qualquer processamento. Esta é uma de muitas outras ações que estamos a desenvolver a nível do continente.
África está a apostar também na digitalização. Para além das transições no setor da energia também há transições no setor das tecnologias da informação e de comunicação. O ECA tem organizado o que nós chamamos de botcamps, por forma a criar uma comunidade de inovadores como nosso contributo para a fazer com que a quarta revolução industrial seja uma realidade no continente. E para além disso nós criamos um centro de informação digital especializado que está a ajudar países como, por exemplo, o Congo-Brazzaville em tudo o que seja a inteligência artificial.


ON: Fala-se cada vez mais em multilateralismo. Como é que a África se conecta a outras comissões econômicas, por exemplo, para conseguir alcançar estes objetivos?


AP: O secretário-geral iniciou uma reforma profunda do sistema das Nações Unidas, incluindo tanto a nível regional. Nós temos uma plataforma de colaboração regional que facilita a realização de economias de escala no trabalho conjunto do sistema das Nações Unidas. Portanto, isso afeta todas as regiões. Por causa dos nossos mandatos, as comissões regionais jogaram um papel muito importante nestas reformas. 
Partilhamos algumas das comissões regionais os mesmos problemas. Por exemplo, entre a América Latina e África, por exemplo, nós vemos alguns padrões de desenvolvimento que são similares. Há países que ainda estão dependentes na exportação da matéria-prima, falo aqui, por exemplo, do Chile, da Bolívia, da Argentina e do Peru, e muitos destes países que têm exatamente as mesmas ambições que os países africanos.
Voltando ao tema com o qual começamos a nossa com entrevista, existe na América Latina o que se chama do triângulo de lítio que inclui o Chile, a Argentina e o Peru. O Chile tem, em particular, ambições de se tornar o hub para a produção de energias renováveis, assim como na África a RDC como o país-âncora. Eles têm exatamente o mesmo tipo de ambições. Portanto, a Cooperação Sul-Sul é importante não só para partilha de ideias, mas mesmo para a criação de companhias transcontinentais em que, por exemplo, o lítio poderá vir da América Latina para as indústrias em África e o cobalto pode vir da África para ir para a América Latina com vista à produção de baterias por exemplo. 
Para além disso, como parte da Nova Agenda Comum, a África acredita no multilateralismo, sem o qual o mundo não estará em posição de resolver muitos dos grandes desafios. Nós estamos a falar, por exemplo, de questões relacionadas com as mudanças climáticas. E fizemos referência manter, dos problemas sociais associados à migração que precisam que as diferentes partes do mundo conversem e consigam forjar estratégias comuns com vista a uma transição justa, sem a qual nós vamos ver um mundo cada vez mais dividido. 
Vamos ver desigualdades sociais aumentar, por exemplo, a questão da vacinação é agora das maiores prioridades do mundo e é preciso cooperação internacional para que se consiga vencer a pandemia. Portanto, nós como comissões regionais temos encontros regulares com vista acertarmos posições, com vista a trocarmos ideias e com vista a nos reforçamos, mutuamente, por via dessa cooperação. 
Por exemplo, nós temos a responsabilidade de criar as plataformas comuns para troca de dados estatísticos etc. E aí temos visto a colaboração frutuosa entre as comissões regionais, dependendo do nível de desenvolvimento de cada uma dessas comissões. Nesta área, a Escap está de certa maneira muito mais avançada e nós colaboramos com eles para melhorar a nossa qualidade e conseguimos neste processo produzir coisas muito importantes para nossa região.

ON: Deseja deixar mais algo relativo ao desenvolvimento, as prioridades e lusófonos, sobre os países lusófonos e seu papel desta nova fase que o continente enfrenta?

Técnico verifica paineis de energia solar
Foto: UNDP/Karin Schermbucker
Técnico verifica paineis de energia solar

 

AP: Bom, os países lusófonos têm responsabilidades nas suas respectivas regiões e, através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp, plataformas para cooperarem o que é muito importante. A nível internacional, com Portugal e o Brasil, nós temos jogado um papel importante na divulgação da língua portuguesa como língua de comunicação e isso é importante como fator para a unidade do das comunidades a nível internacional.
Este ano, a Cimeira Extraordinária da União Africana é dedicada à cultura. Mas a diversidade que representam os países de expressão portuguesa em África é um ativo a para o continente. Contribui para que a África que seja mais rica. Por isso é que fez referência à importância que os nossos países cada um dos nossos países joga no continente.
O Canal de Moçambique é um canal estratégico para a segurança das rotas comerciais a nível global.  E é importante que Moçambique seja visto também nesse prisma, e que a comunidade internacional contribua para que os desafios que o país enfrenta agora sejam resolvidos atempadamente.
Do outro lado, também temos o Golfo da Guiné, que é também uma zona muito estratégica para todo mundo, que enfrenta desafios onde a cooperação internacional é chamada a jogar seu papel por forma que seja uma zona de paz, de desenvolvimento e de coesão social. 
E é nesse sentido que eu vejo os países de expressão portuguesa em África e no mundo em geral: um ativo  que contribui para a riqueza de todos nós, em termos culturais, e são países que estão situados em zonas muito estratégicas e que, portanto, devem ser alvo de atenção de toda a comunidade internacional.