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Entrevista: Marcelo Rebelo de Sousa fala à ONU News sobre reeleição de Guterres e desafios pós-Covid-19

Marcelo Rebelo de Sousa falou à ONU News após participar da cerimônia da eleição do segundo mandato de Guterres

Ele foi primeiro-ministro, eu era o líder da oposição. Mas continuávamos, naturalmente, a manter a mesma amizade sempre. E até uma cumplicidade ao pensar na sociedade portuguesa

Marcelo Rebelo de Sousa , Presidente de Portugal

ONU/Manuel Elias
Marcelo Rebelo de Sousa falou à ONU News após participar da cerimônia da eleição do segundo mandato de Guterres

Entrevista: Marcelo Rebelo de Sousa fala à ONU News sobre reeleição de Guterres e desafios pós-Covid-19

Assuntos da ONU

Presidente de Portugal conversou com Eleutério Guevane sobre a recuperação da pandemia, a Conferência dos Oceanos, marcada para julho de 2022 em Lisboa, a ação portuguesa para mais acolhimento de migrantes e refugiados na Europa e a concertação política da lusofonia para afirmação dos países em vários espaços internacionais. Ele esteve em Nova Iorque, na semana passada, para participar da cerimônia de eleição de António Guterres para um segundo mandato à frente da ONU, que começará em janeiro de 2022. Neste Destaque ONU News, de 21 de junho, acompanhe a primeira parte da entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa.

Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, de Portugal, está com a ONU News neste Destaque Especial. Presidente é bem-vindo. É um prazer tê-lo aqui de novo.

É um prazer revê-lo depois de um intervalo longo da pandemia. Desde 2019, setembro. Foi muito longo.

 

E para uma pessoa que é conhecida por distribuir afetos, deve ter sido muito penoso. Dos anos...Que diferença faz sair deste período?

Foi para todo o mundo. Foi muito penoso. Estamos a sair ainda do confinamento. A diferença é a seguinte: estamos a sair ainda do confinamento. É um processo que ainda demora tempo. Porque mudam as relações entre pessoas. Muda a forma a trabalhar. Há mais digital, mas o digital não substitui o lado humano. A presença. Eu espero que haja presença na Assembleia Geral, em setembro, ainda com delegações pequenas. Porque faz toda a diferença. Uma coisa é videoconferência e o funcionamento a distância. Foi assim o ano passado. Outra coisa é o encontro humano. O encontro entre os países e entre as pessoas: a empatia, a redescoberta, depois deste período tão longo, tão difícil. Difícil pelos mortos, difícil pelos doentes, difícil pela economia que sofreu, difícil porque fecharam as relações entre pessoas e, portanto...Mesmo esta é talvez a viagem mais longa que eu fiz em um ano e meio. Estive na Guiné-Bissau, para referir, um país irmão na mesma comunidade que formamos. É verdade que tive, mas tão longe num só dia, apesar da diferença aqui no funcionamento das Nações Unidas, ainda é um funcionamento a arrancar. Curiosamente, fiquei a saber, era o primeiro chefe de Estado que cá vinha depois da pandemia. E nessa qualidade por uma boa razão. Uma razão que é de felicidade para nós todos, que falamos a mesma língua e partilhamos os mesmos ideais, que foi a reeleição de António Guterres como secretário-geral das Nações Unidas.

Entrevista: Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal (Parte 1)

 

E o que falou com ele?

O que falei com ele foi, primeiro: tivemos a parte da congratulação. Eu felicitei-o e ele agradeceu dizendo como estava sensibilizado. E fiquei com uma impressão muito forte de como tinha sido tão importante a presença dos nossos irmãos da língua portuguesa, aqui nas Nações Unidas, no apoio à candidatura de António Guterres. Como nós apoiamos, há já anos, a candidatura do Brasil, que vai ser membro não-permanente do Conselho de Segurança. E depois Moçambique, sabia? Moçambique vai ser, pela primeira vez, daqui a um ano e meio, membro não-permanente do Conselho de Segurança. Angola já foi duas vezes. No fundo, é o primeiro secretário-geral da Cplp.

 

Este é um bom momento para Portugal? O que é que sente como presidente de um país com esta posição de liderança em organizações internacionais?

Eu sinto...tenho um duplo sentimento. O primeiro sentimento é enquanto presidente de todos os portugueses. Todos eles estão aqui, hoje, pela minha voz, pela minha presença a apoiar, a agradecer e a louvar o primeiro mandato de António Guterres. E a apostar tudo num segundo mandato em tempos difíceis da saída pandemia, da recuperação da crise económica e social, da abertura do mundo, do restabelecimento relações entre grandes, médias e ditas pequenas potências e, ao mesmo tempo, dos desafios climáticos. Os oceanos, que nos ligam muito, aliás haverá uma conferência dos Oceanos, em Portugal, em julho do ano que vem, das Nações Unidas. Mas depois, além disso, o que há de papel das novas gerações, de papel da mulher, de conflitos regionais à espera de solução, do digital e do que mudou na vida das pessoas, da transição energética ...são tantos desafios. Tantos, tantos. Isso eu sinto que é uma honra para os portugueses verem à frente de uma instituição tão importante como secretário-geral um português. E depois, não escondo o lado pessoal. Eu conheço António Guterres desde os 16 anos de idade. Formávamos parte do mesmo grupo. Sonhávamos em conjunto trabalhávamos em conjunto. Portugal era uma ditadura, sonhávamos com a democracia, sonhávamos com o desenvolvimento, sonhávamos com a descolonização que era crucial. Sonhávamos com uma nova comunidade de países que falam a mesma língua. Sonhávamos com tanta coisa diferente e quis o acaso, ou o destino, que muitas décadas depois, eu pudesse como presidente da República Portuguesa testemunhar duas vezes a eleição do meu companheiro de luta daquela altura. Em democracia, ele foi primeiro-ministro eu era o líder da oposição. Mas continuávamos, naturalmente, a manter a mesma amizade de sempre e até uma cumplicidade a pensar na sociedade portuguesa. Eu viabilizei vários orçamentos estando na oposição e chegamos a acordos de regime muito importantes. Portanto, este lado afetivo junto ao lado português, mas também junto ao lado que nos une a nós que muitas décadas depois a Cplp. E junto a aquilo que eu penso que o interesse real do mundo ter um homem destes. A mensagem de hoje do secretário de Estado norte-americano, é isso mesmo, a mensagem da insuspeita embaixadora do Reino Unido, que falou pela Europa, apesar de já não ser da União Europeia, e disse isso mesmo: este homem por aquilo que fez, por aquilo que é, pelo respeito e pelo afeto que tem pelas pessoas, por aquilo que ele sofre com os mais pobres, com os mais explorados, com os mais dependentes, fazendo pontes é a pessoa certa, no momento certo, no lugar certo.

Secretário-geral da ONU, António Guterres, com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa
ONU News
Secretário-geral da ONU, António Guterres, com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa

 

E por onde há mais por estender estas pontes? Hoje, décadas depois dos sonhos que teve na altura, onde é que vê que estas pontes ainda podem chegar?

Não. Têm que chegar a todos os lados. Pontes entre Europa e África são fundamentais. Pontes a pensar nas migrações entre todos os continentes. Porque as migrações têm razões políticas, militares, mas também sociais, económicas e climáticas. Pontes. Mas depois pontes também entre as chamadas grandes potências. Fazer com que permaneça o diálogo entre elas naquilo em que divergem, divergem. Naquilo em que é importante para o mundo que possam convergir. Porque têm de convergir na questão daqui do Ártico, nos oceanos, no clima, em muitas questões de segurança, na preocupação com o ciberterrorismo, com desafios que se colocam que são as migrações. São problemas comuns e nenhum país, mesmo mais rico do mundo, pode resolvê-los sozinho. Essas pontes têm que se refazer. Acaba de entrar em funções a administração Biden. Pois é uma experiência diferente da que existiu com a experiência com a administração Trump. O diálogo na cimeira que houve com a Federação Russa, antes disso a Cimeira com a União Europeia, a reunião da Nato, a necessidade do diálogo com a República Popular da China, o diálogo permanente que houve da União Europeia e, não nos esqueçamos que Portugal neste momento exerce a presidência do Conselho da União Europeia. A cimeira que houve com a Índia, promovida para Portugal, a Cimeira da Social e tudo isto. A cimeira que vai haver da Cplp, em meados do mês que vem, em Luanda. Tudo isto são momentos para pontes. Pontes. Todo o mundo não vive sem pontes. E a pandemia não quebrou as pontes, mas dificultou as pontes. Porque não é fácil falar sem ser olhos nos olhos. Falar através do digital pode ser prático. Não é tão forte.

 

E neste construir de pontes, onde é que a língua vai caber como ferramenta?

A língua portuguesa é um exemplo. Não é por acaso que eu, logo no início da minha intervenção, tive uma frase a dirigir a António Guterres com as  mais calorosas felicitações e os parabéns em português. Porque é uma grande língua. É a língua mais falada no Hemisfério Sul. E quando se diz língua diz-se relações humanas, entre pessoas. Não é pena dizer cultura é tudo:  é a economia, é a relação social, é aquilo que passa através do que se pensa, mas também através do que sente. As línguas aproximam pessoas e o português aproxima pessoas de todos os continentes, de todos continentes e portanto atravessando todos os oceanos. O papel da língua é o papel da proximidade.Nós estamos tão depressa nessa potência que é o Brasil, como estamos nessas potências a nível africano que são Moçambique e Angola. Como estamos nessa plataforma giratória que é Cabo Verde ou num plano diverso e fundamental também São Tomé e Príncipe e a Guiné-Bissau, na costa ocidental.Mas também estamos a falar a mesma língua em Timor-Leste parece que é longe. E nas comunidades migrantes de todos estes Estados. Nós sabemos o que é emigrações e, por isso, compreendemos os migrantes porque são os imigrantes de outros países. E nós, que temos emigrantes nossos, não podemos deixar tratar os imigrantes dos outros a pensar naquilo que sofrem, vivem e passam os nossos emigrantes.

Funcionária do Acnur recebe refugiados reassentados originalmente da Síria e do Sudão do Sul no aeroporto de Lisboa, em Portugal
© Acnur/José Ventura
Funcionária do Acnur recebe refugiados reassentados originalmente da Síria e do Sudão do Sul no aeroporto de Lisboa, em Portugal

 

Aliás, no momento de pandemia Portugal foi elogiado, por várias vezes, pelo tratamento que deu a migrantes e refugiados.

Nomeadamente legalizando. Agora, só nos últimos meses, milhares foram inscritos no Serviço Nacional de Saúde.

 

O que é que espera mais em momento de recuperação para migrantes e refugiados não só lusófonos?

Para já espera-se gratidão da nossa parte. Noutro dia, no Dia de Portugal, 10 de junho, eu agradeci expressamente aos migrantes porque por exemplo setor de obras públicas. infraestruturas, construção civil nunca pararam conjuntamente com portugueses mantiveram economia a andar e isto não tem preço. Portanto a medida que a economia recupera, que é uma reconstrução económica, em Portugal, como pouco por todo o mundo, é evidente que deve ser acompanhada de inclusão, tem que ser acompanhada da compreensão. E essa compreensão supõe parcerias. Não é apenas o receber, acolher e integrar. É a parceria para que haja em matéria do desenvolvimento humano integral uma cooperação permanente. E já falei do relacionamento, a começar no relacionamento entre a Europa e a África.

Parque na capital de Portugal, Lisboa, antes da pandemia
ONU News/Ana Carmo
Parque na capital de Portugal, Lisboa, antes da pandemia

 

Mas temos aqui a questão de uma Europa que, enfim, é agora vista como um pouco mais exigente em relação a migrantes. Como Portugal espera implementar medidas concretas de estímulo e que medidas é que são?

Já insiste. Nós não esperamos. Nós estamos aí como no clima natural, no clima humano que tem a ver com as migrações na liderança do processo. Ainda agora, na presidência, nós não deixamos cair o processo. Sabemos que há quem não acompanha o mesmo ritmo, por uma razão muito simples. Quem não conhece não entende, e quem não entende não pode amar. E o que acontece com vários países é que não têm a proximidade que nós temos, Por isso, temos que explicar o que acontece no Mediterrâneo, nos outros oceanos, sobre as migrações que são transcontinentais têm a ver com falta de parceria e com problemas de desenvolvimento que vem de egoísmos. O que são de muitos de nós me explicar isso é que eu não tenho essa experiência é difícil. Eu às vezes encontro-me a falar com parceiros e amigos europeus, que me dizem o que sofrem. Para eles é importante na Europa o relacionamento com o leste. O relacionamento a leste. Eu digo agora pensem também no relacionamento com o Sul. Ponham-se na posição de europeus do sul e entendam o que é termos um diálogo, que é secular e parcerias por fazer ou refazer, com o sul. O sul América Latina, o sul África, mais rapidamente e mais perto, e têm razão. Há quem demora mais tempo a perceber e acaba por perceber, mas por uma razão muito simples: porque não conhecia, não vivia, não vibrava, não sentia.