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Escola 25 de Junho, na cidade da Beira, foi danificada durante o ciclone Idai

ESPECIAL: Moçambique em reconstrução para resistir à mudança climática BR

Foto ONU: Eskinder Debebe
Escola 25 de Junho, na cidade da Beira, foi danificada durante o ciclone Idai

ESPECIAL: Moçambique em reconstrução para resistir à mudança climática

Clima e Meio Ambiente

Oito meses depois da passagem do primeiro ciclone de 2019, ONU News apresenta segunda parte da série sobre resposta a desastres; país é o segundo mais vulnerável aos efeitos das alterações do clima; reconstrução requer US$ 3,2 mil milhões.

Em setembro de 2018, um sistema de 11 quilômetros de canais e bacias de retenção foi inaugurado na cidade da Beira, na província de Sofala. A segunda maior cidade de Moçambique fica abaixo do nível do mar.

O novo sistema de drenagem é parte de um projeto de US$ 120 milhões, apoiado pelo Banco Mundial para proteger a cidade das cheias e da subida dos oceanos.

O ciclone tropical Kenneth devastou a província de Cabo Delgado, norte de Moçambique onde 38 pessoas perderam a vida causando mais de 20 mil deslocados.
Imagem da destruíção do ciclone Kenneth em Macomia, em Cabo Delgado, Foto ONU/Eskinder Debebe

A 15 de março, quando o ciclone Idai atingiu a cidade, os canais ajudaram a salvar a vida de muitos dos seus 500 mil habitantes. Ainda assim, mais de 600 pessoas morreram. Cerca de 90% da infraestrutura deste centro urbano foi danificada.

O vereador para o Desenvolvimento Humano e Institucional, José Manuel Moisés, disse à ONU News que o dano “podia ter sido muito pior”, mas que “o novo sistema ajudou a controlar as cheias.” Agora, o representante diz que “a cidade precisa avançar com a segunda fase do projeto.”

A nova infraestrutura teve a visita do secretário-geral da ONU, António Guterres, durante a sua viagem ao país em julho. Enquanto recebia a explicação sobre o impacto dos canais na noite do ciclone, o chefe da ONU disse que o projeto era um exemplo que ajuda a criar aquilo que as Nações Unidas chamam de resiliência.

Para o secretário-geral, esse objetivo deve estar presente em todos os esforços de reconstrução. Guterres lembrou que “Moçambique não contribui para o aquecimento global”, mas “é o segundo país do mundo mais vulnerável em relação às consequências das alterações climáticas.”

Resiliência

Depois de visitar os canais, o secretário-geral foi até ao prédio da sede municipal da Beira. Subiu até ao terraço do edifício, olhou em volta para a destruição, e disse aos jornalistas que “está à vista, exatamente, o significado destas palavras.”

Depois dos ciclones Idai no centro e Kenneth no sul, Moçambique avaliou suas necessidades pós-desastres. De acordo com a pesquisa, o país precisa de US$ 3,2 mil milhões para reconstruir as zonas atingidas. Em junho, durante uma conferência de doadores, foram prometidos cerca de US$ 1,2 mil milhões.

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A avaliação de necessidades revelou que “o impacto negativo das alterações climáticas é agora uma realidade cada vez mais presente” e essa situação “deve ser considerada no presente e no futuro.”

Segundo a pesquisa, estes desastres naturais “são uma oportunidade para mudar o paradigma de desenvolvimento do país e criar uma cultura de resiliência a todos os níveis.”

Costa

No total, a cidade da Beira precisa de nove bacias de retenção, ligadas entre si por um sistema de canais. Em caso de inundação durante maré cheia, estas bacias guardam as águas, protegendo a população. A segunda fase está agora em desenvolvimento.

Outra grande prioridade é a proteção costeira, disse o vereador José Manuel Moises. Segundo ele, “a cidade está em perigo” devido aos danos causados pelo ciclone Idai.

O investimento é ainda mais importante porque, segundo estimativas das Nações Unidas, a população da cidade deve duplicar nos próximos 10 a 15 anos.

“Neste contexto, ondas de dois a três metros podem, sim, inundar a cidade. Tendo em conta a consideração os danos que tivemos ao longo da orla marítima, estamos precisando de uma grande intervenção de proteção costeira.”

Secretário-geral António Guterres visita uma escola no campo de Mandruzi, reassentamento a 40 km da Beira, em Moçambique.
Secretário-geral António Guterres visita uma escola no campo de Mandruzi, reassentamento a 40 km da Beira, em Moçambique., by ONU/Eskinder Debebe

Segundo o Plano Municipal de Recuperação e Resiliência da cidade da Beira, são necessários US$ 284 milhões para completar estes investimentos.

Mudança climática

Mesmo antes dos ciclones de 2019, Moçambique já sofria com os efeitos da mudança climática.

A temperatura anual no país aumentou 0,6˚C entre 1960 e 2009, enquanto o nível de chuvas diminuiu. O aumento do nível do mar deve exceder 30 centímetros até 2090, com consequências significativas para os 60% de moçambicanos que vivem em áreas de baixa altitude junto da costa.

Segundo o governo moçambicano, o aumento do nível do mar poderá aumentar cinco vezes as perdas econômicas de inundações nas principais cidades costeiras em cerca de uma década. A secas intensas também devem diminuir o rendimento das colheitas em 11% até 2030.

Infraestruturas

Outro dos locais visitados por António Guterres foi a Escola 25 de Junho. O estabelecimento de ensino tem cerca de 5 mil alunos, entre os cinco e os 14 anos. As aulas começam às seis da manhã e estão distribuídas por três turnos. Cada sala de aula acolhe cerca de 90 alunos.

A escola teve vários pavilhões danificados pelo ciclone. Os telhados foram arrancados pela força do vento e os alunos agora aprendem português ou matemática ao ar livre. Pedaços das coberturas de zinco balançam sobre a cabeça das crianças. O diretor da escola, Frederico Francisco, explicou as dificuldades.

Pavilhão na Escola 25 de Junho, construído para resistir a eventos climáticos extremos
Foto ONU: Eskinder Debebe
Pavilhão na Escola 25 de Junho, construído para resistir a eventos climáticos extremos

“O que nós temos agora, por causa da situação do ciclone, é o problema das salas. A maioria, seis blocos, foram vandalizados pelo ciclone. Não têm chapas de zinco. Nós trabalhamos sem condições. Os alunos estão a ter aulas com os professores em salas que não tem teto. Essa é a maior preocupação e a necessidade maior.”

No centro do complexo, apenas um pavilhão resistiu ao desastre natural. Foi construído com apoio da ONU-Habitat, para resistir a eventos climáticos extremos, e inaugurado um ano antes do ciclone.

Em média, mil salas de aula são danificadas ou destruídas por eventos climáticos todos os anos em Moçambique. Em 2012, o Programa da ONU para os Assentamentos Humanos, ONU-Habitat, começou o Programa Escolas Mais Seguras. A iniciativa oferece uma série de recomendações de como estes edifícios devem ser construídos.

Distribuição de comida na vila de Nacate, perto de Macomia, em Cabo Delgado
Distribuição de comida na vila de Nacate, perto de Macomia, em Cabo Delgado, Foto ONU/Eskinder Debebe

Em 2017, a agência começou uma parceria com o Ministério da Educação e do Desenvolvimento Humano de Moçambique e o Banco Mundial para transformar escolas no centro e norte do país. Desde então já foram construídas 1,1 mil salas de aula. 

O diretor Francisco explica que esse tipo de edifícios pode servir como refúgio durante uma emergência.

“Durante o ciclone, a maior parte da comunidade refugiou-se no bloco resiliente. Convivemos com eles, resolvemos todos os problemas e a partir dali foram se alojando.”

Em 2019, os efeitos nas infraestruturas de educação e de saúde foi destaque do Dia Internacional para Redução de Riscos de Desastres, marcado a 13 de outubro.

Em Moçambique, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, estima que mais de 3,9 mil salas de aula tenham sido danificadas ou destruídas durante os ciclones. A situação afetou mais de 376 mil alunos.

Quanto aos hospitais, a Organização Mundial da Saúde, OMS, calcula que irá demorar cinco anos para recuperar toda a infraestrutura danificada. Cerca de 113 unidades de saúde foram parciais ou totalmente danificadas.

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Poupança

Investir em infraestrutura mais resiliente em países de baixa e média renda pode gerar um benefício econômico de US$ 4,2 trilhões, segundo um relatório do Banco Mundial. Cada US$ 1 investido pode render US$ 4 em benefícios.

Um dos exemplos da pesquisa é o impacto que as mudanças climáticas terão na infraestrutura de transporte. Em Moçambique, o risco de inundações nestas estruturas equivale a US$ 200 milhões por ano, cerca de 1,5% do Produto Interno Bruto, PIB, do país. Até 2050, esse valor pode duplicar.

Outro relatório, publicado em setembro pelo Centro Global de Adaptação, afirma que um investimento de US$ 1,8 bilhões na próxima década pode gerar até US$ 7,1 bilhões em benefícios.

Centro de saúde em Mutua, em Sofala
Centro de saúde em Mutua, em Cabo Delgado, Foto ONU/Eskinder Debebe

A coordenadora residente da ONU em Moçambique, Myrta Kaulard diz que existe uma necessidade de investimentos de longa duração porque todo o país está exposto a desastres naturais. Ela afirma que exemplos como os canais e a escola da Beira “certamente precisam ser expandidos, porque provaram ter um bom impacto.”

Segundo ela, a necessidade apenas deve crescer. Kaulard alertou que “os desastres naturais estão a ficar cada vez mais fortes, por isso a forma de reconstruir tem de seguir o último conhecimento, porque existem melhores maneiras de construir e de reduzir o impacto desses desastres.”

Políticas

A especialista conta que resiliência pode ter vários sentidos. Segundo ela, “as pessoas precisam saber o que fazer em tempos normais, para que o seu comportamento não as coloque em risco em tempos difíceis, como morar em zonas sujeitas a inundações.”

Kaulard explicou que os governos têm a responsabilidade de “ajudar as pessoas a mudar para locais onde podem sobreviver sem serem muito afetadas”. Um dos exemplos é o setor da agricultura, um dos mais afetados pela mudança climática. O ciclone Idai destruiu mais de 700 mil hectares de plantações.

Quase de imediato, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, FAO, distribuiu 15 mil kits com ferramentas agrícolas e sementes de feijão e milho. As culturas cresceram rápido, em apenas 90 dias, e foram colhidas em julho e agosto, ajudando a alimentar milhares de pessoas.

Ainda assim, o número de moçambicanos em insegurança alimentar disparou. Em setembro, um milhão de pessoas tinha falta de alimentos, incluindo 160 mil crianças com menos de cinco anos. O número deve aumentar para 200 mil em fevereiro de 2020. 

Unicef estima que mais de 200 mil crianças em Moçambique devem ter falta de alimentos em fevereiro
Foto ONU: Eskinder Debebe
Unicef estima que mais de 200 mil crianças em Moçambique devem ter falta de alimentos em fevereiro